A VIDA POR UM FIO NO MARACANÃ
Quiseram os deuses que o meu amor pelo Flamengo fosse muito bem correspondido. Nasci no ano em que o América foi campeão carioca, mas depois disso vi um mar de conquistas e estava nos meus vinte anos durante a gloriosa década de 80, quando ganhamos tudo. Bem melhor foi poder estar presente a cada uma dessas vitórias. Simplesmente estive em todas as finais de Brasileiro do Flamengo e em todas elas saí com a faixa de campeão.
Mas houve uma final diferente de todas, em que saí do Maracanã mais triste do que alegre. Foi em 1992. Naquele ano, o time do Flamengo era composto de Junior e mais dez. O maestro voltara depois de várias temporadas no futebol italiano, onde haviam percebido que seu talento e sua visão de jogo eram desperdiçados no exílio da lateral-esquerda. Voltou ao Flamengo para ser o craque, o cérebro, a alma e o professor de um time cheio de garotos. Foi dessa forma que o Flamengo conseguiu chegar à final, com Junior fazendo mais milagres que São Judas Tadeu.
O Botafogo, por sua vez, fizera uma campanha melhor e tinha um time muito bem azeitado, contando com a raça e a categoria de Renato Gaúcho, um jogador que desmentia a oposição entre força e habilidade. Era o time mais ofensivo do campeonato. E o favorito ao título. A final foi disputada em dois jogos. No primeiro, um baile do aplicado time rubro-negro: três a zero. Com isso, o Flamengo já estava quase lá, era muito difícil que o Botafogo conseguisse reverter aquela vantagem. Mas não era impossível.
Foi assim que partimos de Niterói, eu e mais quatro amigos, na direção de mais um título. Não tínhamos como saber, mas naquele dia o Maraca iria receber o último grande público da sua história: mais de 120 mil torcedores. Nós tínhamos o ingresso, mas entrar no estádio foi uma tourada. Quando atravessamos o túnel que dá para a arquibancada, havia uma massa humana impenetrável, uma barreira feita de corpos colados uns aos outros. Mesmo assim, todo mundo ali era macaco velho de arquibancada e ninguém queria deixar de estar presente.
Aos trancos e barrancos, pedindo licença e empurrando ao mesmo tempo, colocando o corpo feito um zagueiro numa dividida, conseguimos achar o nosso lugar. Lá no final da arquibancada, bem em baixo, junto da mureta de proteção. Acostumados com o desconforto, todos nós estavamos muito satisfeitos de ver o jogo dali, afinal qualquer lugar nos servia. Todos nós, não. Dos cinco que foram ao jogo, três eram irmãos. E o irmão mais velho, um amigo muito querido e que fora meu aluno na UFF, decretou com voz de comando:
– Não vamos ficar aqui, é muito perigoso, vamos subir.
Realmente havia a possibilidade de uma movimentação da multidão, no caso de um gol ou de uma briga, nos empurrar na direção da grade e logo do abismo. O fato é que meu amigo começou a subir resolutamente a arquibancada, sem nem mesmo esperar qualquer constestação ou protesto. Seus dois irmãos logo o seguiram e eu e outro amigo fizemos o mesmo sem demora. Foi quase um milagre conseguirmos subir cerca de dez lances de arquibancada.
Assistindo ao jogo, de repente ouvimos um estrondo assustador. Perguntei ao vizinho de cima, que estava com um radinho, se havia sido uma bomba. Ele disse que não. A mureta de proteção, bem diante de nós, e onde nós havíamos estado minutos antes, havia se rompido levando à queda de vários torcedores sobre o setor abaixo, das cadeiras, que à época eram de metal. Depois ficamos sabendo da morte de três torcedores. Não conseguíamos ver nada, pois mesmo depois da “explosão”, a aglomeração de torcedores era tal que impossibilitava a visão da mureta destroçada. Quando a PM veio e isolou a área nós tivemos que assistir o restante do jogo olhando para aquele vazio, pensando no horror e no fato de que estavamos vivos por um fio.
Ou melhor, estavamos vivos graças a uma decisão resoluta de um de nós, que naquele dia salvou cinco vidas.
O nome dele é Marcelo Freixo.