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HISTÓRIAS DO ALVITO – DUAS VIDAS

DUAS VIDAS
Domingo é dia bom, dia de correr no Aterro com minha irmã e meu cunhado. O Aterro é o maior parque popular da cidade de São Sebastião. Tem tudo aqui e agora: praia, visão deslumbrante da Baía de Guanabara, infinitos gramados, pista para correr ou andar de bicicleta ou skate e lindas e variadas árvores. Sem falar nos campos de futebol e seus peladeiros organizados e infatigáveis. O pedaço roubado ao mar foi bem utilizado. De vez em quando o ser humano acerta uma.
E por falar em seres humanos… Ali estava eu à espera dos meus companheiros de corrida. E vi a mulher se aproximando, lentamente, as pernas meio entortadas pelo tempo, andando como se estivesse arrastando grilhões, mas de forma resoluta. Uma senhora que tem, com certeza, mais de 70 anos. Destes, 30 ela dedicou aos gatos e gatinhas dali do Aterro, onde todas as manhãs ela vem dar-lhes água e comida. Além de broncas, carinhos e conversas:
— De onde você veio, gatinha? Como é que você apareceu?
É o que ela diz para uma gatinha branca e muito magra, enquanto a bichinha devorava a ração que a senhora havia colocado em cima de uma folha de revista. Para conquistar de vez a recém-chegada, a senhora acrescenta uma porção de peito de frango desfiado enquanto afasta com a outra mão um gato que queria participar do banquete:
— Você já comeu! Isso aqui é para essa mocinha que está passando fome.
Pergunto a ela o que faz quando os gatos ficam doentes. Diz que o máximo que pode fazer é dar um antibiótico e seja o que Deus quiser. Ela conhece todos os gatos daquela área, mas não sabe dizer quantos são, a toda hora chega um:
— Largaram esse aqui tem uma semana, diz ela apontando para um gato tigrado deitado ao sol.
Depois fomos correr em um sol marroquino (para dar um tom exótico), pisando no asfalto fumegante das 8 horas da manhã do verão carioca.
Fiz umas comprinhas e peguei um Uber para ir para casa. Sempre gosto de conversar com motoristas, é como tirar uma carta de um baralho que nunca se repete. Este senhor, talvez da minha idade, se animou quando eu disse que era professor e revelou que também era, “professor de inclusão”, trabalhando sobretudo com alunos autistas. Disse também ser missionário e contou que trabalhou anos em Pernambuco, junto ao rio Capibaribe. Tinha um jegue e com ele ia buscar água nas cacimbas. Recomendei a ele o longo poema “O rio”, em que João Cabral de Melo Neto põe o próprio rio Capibaribe para contar o seu percurso, descrevendo as regiões por onde ele passa.
Uma porção de gatos e um jegue, duas vidas humanas.
Nada mau para uma manhã de domingo.