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Histórias do Alvito – O telefone, a moto e o túnel

Histórias do Alvito
A MOTO, O TELEFONE E O TÚNEL
Vou logo avisando: é uma crônica meio surrealista. Ou talvez seja uma crônica bem realista de um mundo meio surreal, não sei. Mas a culpa não é minha.
Acordei cedo e em seguida alcancei a suprema aspiração do homem: tomar o café da manhã que certifica nossa existência. Banho quente. Barba feita. Fui no burrinho levar minha filha à escola.
Na ida, tudo ótimo: ela me contou animada da sua vida de menina: a ida à praia depois da escola com as amigas, os planos de uma delas para se tornar cirurgiã cerebral, enfim, um mundo de possibilidades em aberto.
A volta é que foi soturna. Imerso na névoa dos sonhos adolescentes, não estava preparado para entrar em um túnel. Basicamente um buraco escavado por tatus mecânicos, recoberto de azulejos e iluminado artificialmente. Mesmo assim, um buraco. Nosso lado bicho sente e se ressente, de estar enfiado ali.
Uma nova e feérica iluminação facilitou a direção, mas tornou a visão do interior da cavidade ainda mais fantasmagórica. Do lado direito, uma plataforma que ninguém pisa, com fios e cabos não identificados correndo pelas paredes não se sabe para onde nem para que.
Uma neve de sujeira cobre sem esperança todas as superfícies, de alto a baixo. E embora disfarcem bem, dá para sentir em cada carro a vontade de logo sair dali.
Quando morei na Inglaterra, um conhecido me avisou quanto ao túnel invernal, no qual a gente entrava e tinha impressão de que jamais iria conseguir atravessá-lo. O mundo parece estar atravessando um túnel assim, infinito enquanto dura.
De repente, o desvio do caminhão à minha frente me avisava da existência de algum obstáculo. Era uma linda e reluzente moto branca. Abandonada, sem ninguém por perto. Por que o seu dono ou dona não a empurrou até a saída?
Foi aí que, já tomado pela febre do espanto eu vi o que não esperava, de forma alguma, ver. Na plataforma, virado na direção dos carros, um objeto vindo de um outro tempo, de um outro século, de um outro mundo. Um telefone preto de discar.
Deu vontade de parar o carro, empunhar o aparelho e ligar para alguém que possa finalmente me responder à pergunta:
— Moço, onde está a luz no fim do túnel?