/Histórias do Alvito – PARA ONDE VOAM OS PAPAGAIOS

Histórias do Alvito – PARA ONDE VOAM OS PAPAGAIOS

Histórias do Alvito

PARA ONDE VOAM OS PAPAGAIOS

Eles voavam apressados, o medo nas asas, não vendo a hora de atravessar para o outro lado em busca de um pedacinho de mata ou até de uma boa e velha árvore. Tucanos, gaviões, papagaios e outros pássaros menores que não tive condições de identificar. Pareciam estar em busca de um paraíso perdido, levavam o jeito desesperado dos últimos da espécie. Afinal, em torno deles só havia o deserto agro, que não é chão de fábrica mas fábrica de chão, em que a natureza é um conceito ultrapassado. Pois o solo é aditivado com adubo, rasgado por máquinas e cultivado com sementes geneticamente modificadas, sobre as quais aviões despejam nuvens de venenos anti-praga.
Riobaldo diz que andar em trem-de-ferro é bom pra pensar. E dirigir em estradas intermináveis também. Fiquei pensando quando o homem estiver na mesma situação que estas nobres criaturas aladas. Quando a “civilização” tiver sido completamente destruída e os bichos-homens vagarem pela Terra em busca de um lugarzinho menos tóxico, não para viver, mas para pelo menos sobreviver. Pois não somos o homo sapiens, somos o homo eversor (destruidor). E é sempre bom lembrar que não temos asas, teremos que arrastar os pés por este mesmo chão que agora arrasamos.
Lá em cima, os pássaros batendo em retirada. Aqui embaixo, eu e o burrinho tentando sobreviver ao comportamento tresloucado dos SUV’s (Só Um Viverá) e a carretas duplas que chegam a ser dois metros maiores do que o comprimento de uma quadra de basquete. A estrada nada tem de natural: milhares de objetos, alguns pesando toneladas arremetendo para frente e para os lados a velocidades que passam a multiplicar seu peso várias vezes no caso de uma colisão, daquelas de fazer o metal virar papel amassado. Se você pensar muito, para no próximo posto e pede resgate aéreo.
Mas, como diria Diadorim: “Carece de ter coragem”. E paciência, coisa que eu e o burrinho temos de sobra, pois somos velhos demais para ter pressa, deixamos isso para os jovens. Por conta disso, chegamos a uma cidade de Grosso do Sul, aprazível burgo que tem hoje cerca de 25 mil almas, incluindo na contagem, é óbvio, até mesmo os sem alma alguma. A cidade tem uma história muito original. Normalmente o povoado se transforma em vilarejo, o vilarejo em vila e a vila em cidade, momento em que se desenvolve a especulação imobiliária. Pois aqui foi o contrário. Um corretor imobiliário gaúcho sobrevoou a região e percebeu a existência de um planalto de 900 metros de altura, perfeito para plantio e utilização de maquinário. Articulado com outros conterrâneos, planejou a ocupação e iniciou a destruição das matas e a escravização da terra.
Não pode se dizer que não tenha sido um sucesso. Pouco mais de meio século depois, existe uma cidade muito bem organizada, ruas largas, limpas, tudo no formato lógico de um tabuleiro de xadrez. É um município rico. Em uma de suas avenidas há uma concentração de negócios ligados à agricultura: assessoria para planejamento de plantio, aluguel de aviõezinhos para espalhar “defensivos”, venda de sementes modificadas, rações para o gado e muito mais. Muitas companhias são multinacionais, não se planta um grão de soja, não se colhe um tufo de algodão sem tecnologia estrangeira, sem pagar royalties. Mas há também o desenvolvimento de tecnologia nacional e a cidade dispõe de um laboratório de estudos sobre o algodão de nível internacional.
A soja, o algodão, o boi, a cana-de-açúcar se transformam em mansões de estilo curioso, que lembram casas de seriados americanos, em que as garagens e os carros (sempre o Só Um Viverá) ocupam lugar de destaque. Há muitas bizarrias: casas estilo bunker que na fachada não ostentam uma só janela, outras que na frente têm ciprestes, símbolo do luto e da melancolia e até uma casa, juro, feita com pedra de lápide… Há lojas de roupas que apregoam estarmos no Texas, mas, felizmente, não vi ninguém com chapéu de caubói e botas de couro.
É claro que se geram empregos, na agricultura totalmente mecanizada nem tanto, mas há posições na usina de cana e muito trabalho no setor de serviços. Para cá vêm pessoas de todo o Brasil. Não há “espaço” para eles dentro da cidade, vivem numa vila à beira da estrada a alguns quilômetros de distância. Padrão Brasil de desigualdade e distância social e física. Em termos “raciais”, os brancos, gaúchos e descendentes, muitos com origem italiana, são donos de quase tudo. Negros e mestiços, migram para sobreviver com as migalhas de uma festa para a qual não foram convidados, são apenas tolerados como mal necessário.
Em suma: em menor escala, repetem-se as mesmas distorções do nosso “desenvolvimento”: terra e riqueza concentrados nas mãos de poucos, sem nenhuma perspectiva de distribuição de renda ou de gastos sociais significativos.
O Brasil já foi chamado Terra dos Papagaios. Agora eles parecem estar fugindo daqui. Não os culpo por abrirem as belas asas e voarem para longe.
Vou procurar saber para onde.