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Histórias do Alvito – Sete cheiros

Histórias do Alvito

SETE CHEIROS

O primeiro:

Num desses devaneios típicos de librianos, mesmo sem uso de alucinógenos, fiquei imaginando qual foi o primeiro cheiro que senti. Viajei. Mas, segundo este estraga-prazeres gigante chamado Google, o primeiro cheiro que o feto sente é o do útero. Cientificamente correto e muito justo, mas cheiro de útero é abstrato demais, aí sim, eu iria precisar de alucinógenos para imaginar. Então vou fazer de conta que só vale do lado de fora. E aí o primeiro cheiro que devo ter sentido foi o cheiro da minha mãe, talvez misturado com um pouco de cheiro de sangue… Claro que eu devo ter pensado: — Ô, enfermeira, limpa logo esse sangue para eu sentir o puro cheiro de mamãe. Sem querer ser excessivamente edipiano (sou do tipo assumido), durante muito tempo era só o cheiro dela que eu queria sentir mesmo.

2. Frumelo. A escola era boa, mas árida. Não tinha biblioteca nem tinha quadra de esportes, laboratório nem pensar. Eram só dois prédios de dois andares, os banheiros, a secretaria e um acanhado pátio com duas árvores. Ainda hoje sou metódico com doces, devoro meu pedacinho de chocolate depois do almoço sem direito a bis. Naquela época, eu comprava minhas balas frumelo com o moço lá fora, mas só as comia na hora do recreio. Comer é maneira de dizer. Primeiro havia que desembrulhar a bala devagarinho: a antecipação do prazer já é um prazer. Aquele cheiro maravilhoso de framboesa artificial. Depois a língua a acolhia com carinho e alegria. Nada de morder. No início, só fazê-la passear pela boca, como se não fossem velhas conhecidas. Aos poucos, aquele sabor adorado me convencia que era a hora de cravar os dentes.

3. Arroz de tomate. Vovó era a pessoa mais bondosa do mundo. Só não sabia cozinhar. Para isso, tínhamos mamãe. Mas, porém, todavia, contudo, vovó fazia um prato cujo cheiro inalo até hoje: arroz de tomate. Era simples, mas o vapor daquele arroz fumegante … Só muito tempo depois é que fui pensar na infância pobre de vovó em Portugal e imaginar que ela deve ter comido muito arroz com tomate e um ovo (talvez) quando era pequena. Mas vovó nunca reclamava da vida e não falava do passado. Infelizmente, ninguém perguntou a ela a receita do divino arroz.

4. Opium. Juro que até hoje eu sinto um arrepiozinho ao contar essa história. É imoral dizer isso, mas foi há quarenta anos (ou mais). Era tímido e tinha tido poucas namoradas. Por nenhuma havia sido apaixonado como eu era por … ela, digamos assim. Foi Proust e não foi Vinicius de Morais que disse para deixarmos as mulheres bonitas para os homens sem imaginação. Poucas pessoas diriam que ela era bonita, mas ninguém diria que era feia. É uma questão de campo magnético. Namoramos brevemente e ela me deixou impiedosamente. Até aí, é da vida. Mas o problema é que ela usava Opium, o perfume. Não somente pelo nome, nem pela fragrância deliciosa, mas sim pela lembrança que desencadeava, aquilo sim era uma droga pesada. Meu nariz detectava o Opium à distância e quando vinha uma mulher embebida naquele veneno eu mudava de calçada, antes do Chico fazer aquela música sobre um grande amor.

5. Ilha. Minha gatinha. Uma fera selvagem que arranhava todo mundo, inclusive a mim (só de vez em quando). Mordia também. Em compensação era dengosa feito calda de chocolate. Ao abrir a porta e entrar em casa ela já estava deitada de barriga para cima esperando os carinhos a ela devidos por eu ter saído de casa. Não ficava no meu colo quando eu estava no computador, embora às vezes passeasse pela mesa e até desse uma olhadinha no Zoom com ciúme dos meus alunos e alunas. Mas, quando eu estava na poltrona ou sofá lendo, ela não me largava. Eu lia fazendo gafuné e ai de mim se parasse, me arriscava a uma advertência leve (batida com a patinha sem unhas), média (arranhãozinho) ou grave (mordida). Depois de sete anos desse relacionamento “conturbado” e feliz, ela me deixou de um dia para o outro. Até posso vir a esquecer o cheiro de Opium (maldito Yves Saint-Laurent!), mas vou sempre me lembrar do cheiro da minha gatinha Ilha.

6. Talco. Fraldas e nenéns? Nada disso. O tema é: futebol de botão. Meu prédio não tinha quadra, não tinha piscina, não tinha playground. Era sobre pilotis e no espaço entre eles havia a garagem. Era ali que brincávamos. Havia um fundamentalismo automotivo que nos proibia de jogar futebol para não danificar os preciosos fuscas, gordinis, aero-willys etc. A solução era jogar futebol de botão, praticado com as mãos e sentido com a imaginação, porque disputávamos os campeonatos mais importantes com os maiores craques do Brasil e do mundo. Até desenhávamos revistas “informando” sobre as partidas. E os nossos “campos”, para que os botões deslizassem melhor, ganhavam um leve banho de talco que, para nós, tornou-se sinônimo de brincadeira.

7. Travesseiro. Caramba, deixei o mais difícil para o final. Não foi no século passado mas já tem muito tempo. Uma das frases, talvez a frase mais bonita de Grande sertão: veredas, é aquela em que Riobaldo se lembra de um sorriso de Diadorim e fala que Diadorim está sorrindo para ele até hoje. Naquela tarde ela também sorriu para mim, eu na janela, ela na calçada, prestes a ser encoberta pela folhagem da rua. Sorriu aqueles olhos que diziam para mim eu te amo em todas as línguas e na única língua, a nossa. Foi a última vez em que a vi. E o que fazer com o perfume dela assombrando o travesseiro? Abraçá-lo e beijá-lo? Por fim, venceu a sensatez ou talvez fosse o instinto de auto-preservação: decidi colocar tudo para lavar e começar de novo. Maravilha. Até eu abrir o armário e descobrir a camisola preta… Cheiros…