/Histórias do Alvito – TOMANDO CAFÉ COM AS DIVINDADES INFERNAIS

Histórias do Alvito – TOMANDO CAFÉ COM AS DIVINDADES INFERNAIS

Histórias do Alvito
TOMANDO CAFÉ COM AS DIVINDADES INFERNAIS
Era o segundo dia de estrada voltando para casa no burrinho em meio às carretas transatlânticas e os Só Um Viverá (SUV). Um bom café da manhã reforçado era mais do que recomendável. Na parte alimentar, tudo ótimo: suco, frutas, o indispensável pão francês com manteiga e café. O problema foi a companhia da televisão.
A essa hora da manhã, pululam os programas mais sangrentos da programação e olha que a concorrência dos filmes americanos é pesada. Mas ninguém barra um apresentador dizendo como o PM à paisana matou um “marginal” e feriu outro, com a câmera mostrando o corpo estendido no chão e se tiver poça de sangue lá vai o close.
Essa generosa dose de pulsão de morte servida logo de manhã, na hora em que a classe trabalhadora se prepara ou até já está a caminho do batente reforça uma visão de mundo bem Lei e Ordem, ou seja: existem os transgressores e os repressores e a vida é uma eterna luta, um bang bang incessante entre esses dois grupos.
Nada de explicar como essa realidade é produzida: desigualdade econômica e social, racismo estrutural, corrupção governamental generalizada, justiça lenta e parcial ao extremo e por aí vai. Tudo isso mata muito mais, mas não tem a concretude de um “marginal” abatido em pleno assalto, não sacia o desejo de vingança.
Por falar nisso, era costume dos gregos bater na madeira para trazer sorte, ou, ao menos, para afastar o azar. Acontece que batiam de baixo para cima, porque queriam despertar os deuses do Olimpo, benfazejos, protetores. Bater na madeira para baixo, como fazem repetidamente milhões de brasileiros, é um chamado às divindades infernais, às Erínias sedentas de sangue.
Elas não se fazem de rogadas e nos são servidas nesses cafés da manhã em que se celebra a barbárie e a morte.