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Histórias do Alvito – Your Song

Histórias do Alvito
Your song
O bom e velho Hesíodo apresenta a Idade de Ouro como um mundo em que homens e mulheres viviam em paz, despreocupados, sem necessidade de trabalhar. A primavera era eterna, sem os excessos do verão e do inverno. Não envelheciam, embora fossem mortais, mas seu fim era tranquilo.
A minha idade de ouro foi, com certeza, aos doze anos. Senão, vejamos: eu era mortal, mas nem desconfiava disso e à época ainda crescia, portanto, não envelhecia. Também não precisava trabalhar, nem pensar em que profissão abraçaria no futuro. E aposto que a comida na casa de Dona Fernanda era mais abundante e saborosa do que nesse mundo inventado pelo poeta-camponês da Beócia. Minha vida fluía: estudava, tirava boas notas (pra falar a verdade, ótimas) e disputava meus campeonatos de botão com a seleção de 70, em que o craque era Tostão, um botão amarelo imenso que gostava de chutar de longe.
Sim (pausa para um suspiro) … já me encantava com a beleza das meninas — meu sonho impossível era a filha do diretor — mas não pensava muito nisso. Naquela época, ninguém namorava aos doze anos e a puberdade estava mais longe do que a lua, embora não tão longe assim porque os americanos haviam cravado a bandeira deles três anos antes, em um ato explícito de imperialismo interplanetário. Mas, deixemos o garoto politizado dos quinze anos para depois, voltemos aos doze anos.
Deve ter sido nessa idade mágica que ouvi pela primeira vez Your Song …
Recentemente, até o Príncipe Harry tentou tirar uma casquinha de Your Song no audio-book do seu tão criticado livro de memórias. Mas calma com essa narrativa, nada de ficar apressado que nem um garoto de doze anos.
É melhor começar do começo. Your song era uma música de Elton John e seu parceiro Bernie Taupin que fez um sucesso estrondoso desde que foi criada, em 1970. A letra não é nenhum primor e tem platitudes feito “este sentimento dentro de mim”, “não tenho muito dinheiro, mas se tivesse compraria uma casa grande para a gente viver” e por aí vai com ele dizendo que o que tem a oferecer é a sua canção (fofinho) e “como a vida é maravilhosa quando você está no mundo” (sem comentários). O próprio Elton John, rei do pop, já fez coisa muito melhor. E quando ele diz “você tem os olhos mais doces que eu já vi”? Ok, vocês já entenderam. Acontece que se chama música, não se chama letra. E a melodia, com Elton John acariciando o piano e derramando a voz, torna a letra envolvente, põe a gente naquele estado de pré-paixão. A paixão vocês conhecem, é quando as laranjas ficam mais doces, o céu inaugura um novo azul mais azul e as nuvens, mesmo paradas, parecem estar dançando.
Claro que todo mundo quis regravar a canção. Recentemente, Lady Gaga, em uma homenagem a Elton John, veio toda de branco, incluindo plumas, uns óculos psicodélicos bem comportados e o auxílio luxuoso de uma orquestra de violinos, violoncelos e tudo o mais. A voz dela é linda e a performance foi tecnicamente perfeita. Mas faltou emoção, pareceu uma ópera burocrática.
Muitos anos antes, Al Jarreu, brincando com a voz que Deus lhe deu, nos ofereceu uma interpretação sinuosa, cheia de ginga, valorizando cada palavra… principalmente o sentimento por trás de cada uma. Ele canta para alguém, se emociona, o seu corpo vibra (Lady Gaga parece uma estátua). Ao fim ele termina com um transe musical, a gente não sabe mais se ele está cantando, gemendo ou tendo uma pequena morte em pleno palco.
Apesar disso tudo, ainda não foi a melhor versão. Antes da melhor, é preciso abrir um parêntesis sobre as festas. Em sua maioria eram mesmo no meu prédio. Esvaziávamos o máximo que podíamos um cômodo – os apartamentos tinham só dois quartos – e deixávamos o aposento praticamente sem iluminação. A música vinha de um toca-discos e não havia um planejamento, era na base do:
— Bota essa daqui…
Naquela época, ao menos onde eu morava, no bairro de Botafogo, no Rio, só tocávamos músicas americanas. Os Secos e Molhados romperam essa barreira, em seguida Os Mutantes e outros. Na nossa história de hoje, todavia, só teremos música americana. Todo mundo sabia que a festa tinha que começar com músicas “rápidas”, para o pessoal ir se entrosando, se soltando. Afinal, antes da música tocar, meninos e meninas ficavam segregados em paredes opostas como duas espécies diferentes se estudando … Depois, mais para o final, era a hora das músicas “lentas” para rinocerontes e gazelas dançarem agarradinhos. O momento decisivo.
Quando tocava, todo mundo ia para a pista: Your song na versão de Billy Paul. Primeiro, uma breve e colorida introdução instrumental. Billy Paul começa pianinho, como se estivesse afagando a mão da moça. Mas canta cheio de balanço, ameaçando libertar a emoção a qualquer momento. E ela começa a tomar conta… a música dispara depois se contém e é o cantor que parece estar se segurando. É aí que ele faz algo genial, talvez inspirado em Moreira da Silva: dá um breque (vê se aprende, Lagy Gaga). E é um breque tão bem encaixado, tão perfeito que ele não se contém e diz, rapidinho para não perder o ritmo: — I am doing beautiful. Enfim, são seis minutos e meio que voam porque a música vai subindo e se tornando mais alegre, mais cheia de mana, axé, pózinho de pirilimpimpim… No vídeo, Billy Paul fica parado, balançando os ombros levemente, olhos entrecerrados, se concentrando, vivendo a canção que parecia ter sido feita sob medida para ele e vice-versa.
O que isso tem a ver com os meus doze anos? Bem, a idade de ouro de Hesíodo não durou para sempre, tampouco a minha. Billy Paul, cantando daquele jeito, fez vibrar teclas do corpo e da alma do menino. A filha do diretor podia ser um amor impossível, já a Viviane do 306… e dá-lhe das laranjas ficarem mais doces e o céu, juro, nunca foi tão azul.