HISTÓRIAS DO SERTÃO – A LENDA DE ANTÔNIO DÓ
Naquele jantar no bar de Dona Márcia e Seu Ramiro , havia mais gente proseando conosco além de João. Pedro, advogado, tinha trabalhado muitos anos para a Ford e por isso rodado muitos municípios de Minas, onde vira muita coisa. Diz que certa vez foi a uma cidade tratar de uma causa, ficou até a noite e não pode sair. Simplesmente porque a cidade tinha dono e ele fechava o portão da cidade às 7 da noite: depois dessa hora ninguém mais saía ou entrava. Contou também outra história interessante e que se relaciona com o Grande sertão: veredas. No livro, há alguma mistura entre personagens inventadas, como Joca Ramiro, Zé Bebelo, Hermógenes e outros e figuras históricas reais. Nesse último caso, estão vários coronéis, como Horácio de Matos, que com seus homens chegou a combater a Coluna Prestes, cuja passagem pelo sertão mineiro é mencionada no livro. Mas a personagem histórica mais mencionada é o famoso cangaceiro Antônio Dó.
Sua história é semelhante à de Lampião. Depois de ver sua família sofrer uma injustiça à da força policial, Antônio Dó forma um bando armado e durante vinte anos percorre a mesma região por onde andou Riobaldo: norte de Minas, sul de Goiás e da Bahia. Em termos cronológicos, o tempo de atuação de Antônio Dó, entre o final do século XIX e o início do XX, também é compatível com o romance. Tendo desbaratado várias expedições policiais organizadas para prendê-lo ou matá-lo, o “bandoleiro” Antônio Dó começou a virar lenda entre a população sertaneja. Na memória local, transforma-se numa espécie de Robin Hood. Durante duas décadas desafia e confronta as forças policiais, impondo pesadas baixas e vindo a tornar-se uma espécie de inimigo público número um das autoridades de segurança. Enquanto isso, a fama de Antônio Dó só crescia junto ao povo humilde, virando juiz de paz e sendo chamado de “Rei das Gerais”.
Nas primeiras páginas do romance, Rosa mistura personagens inventadas e figuras históricas, entre elas Antônio Dó, que Riobaldo diz ter conhecido pessoalmente:
“Viver é muito perigoso… Querer o bem com demais força, de incerto jeito, pode já estar sendo se querendo o mal, por principiar. Esses homens! Todos puxavam o mundo para si, para o concertar consertado. Mas cada um só vê e entende as coisas dum seu modo. Montante, o mais supro, mais sério – foi Medeiro Vaz. Que um homem antigo… Seu Joãozinho BemBem, o mais bravo de todos, ninguém nunca pôde decifrar como ele por dentro consistia. Joca Ramiro – grande homem príncipe! – era político. Zé-Bebelo quis ser político, mas teve e não teve sorte: raposa que demorou. Sô Candelário se endiabrou, por pensar que estava com doença má. Titão Passos era o pelo preço de amigos: só por via deles, de suas mesmas amizades, foi que tão alto se ajagunçou. Antônio Dó – severo bandido. Mas por metade; grande maior metade que seja.”
Em outra passagem, menciona a tentativa feita por Indalécio e Antônio Dó de invadir a importante cidade de São Francisco em 1896, tendo sido impedido pela população local, que se organizou, construiu barricadas e impediu corajosamente a entrada dos dois bandos de cangaceiros.
Antônio Dó jamais foi preso. Foi morto em 1929 por um membro do seu bando, que a acreditava que o chefe estava com um saco de diamantes. Mas continua muito vivo na tradição oral do sertão mineiro. O advogado Pedro, proseando conosco naquela noite no bar em Andrequicé, nos deu uma versão alternativa para o fim do grande chefe cangaceiro: ele teria aparecido misteriosamente morto em uma canoa a descer o rio São Francisco com um tiro na testa.
Este pequeno episódio mostra que o imaginário do sertão de Guimarães Rosa continua vivo, ainda produzindo lendas mais persistentes e difíceis de morrer do que Antônio Dó.