/Histórias do sertão – A pequena terra sertaneja onde nasceu Rosa

Histórias do sertão – A pequena terra sertaneja onde nasceu Rosa

De Andrequicé, fomos para Cordisburgo, terra onde nasceu João Guimarães Rosa em um 27 de junho de 1908, quando a localidade, no dizer de seu filho mais ilustre, “era um arraial, uma aldeiazinha”. A cidade fica em um vale entre as lindas montanhas de Minas, sendo justificável seu primeiro nome: Vista Alegre, embora Rosa adorasse Cordisburgo, “burgo do coração”, que para ele era “uma noção mágica do universo”. Sempre foi um ponto de parada e pouso para tropas de burros e rebanhos sendo transportados.

Cordisburgo é toda ao comprido, como se fosse um rio. Curiosamente, não há rio e sim a estrada de ferro, datada de 1904 e que funciona como tal. Logo visitamos a Casa Guimarães Rosa, o museu dedicado a ele e que fica na antiga residência de seus pais, Seu Florduardo e Dona Chiquitinha. Seu Florduardo era importante figura local, juiz de paz e comerciante, além de caçador de onça e contador de causos. Na frente da casa, como podemos ver ainda hoje, funcionava uma venda, daquelas com um balcão bem comprido, onde a turma tomava sua pinga e contava suas histórias.

E a frequência devia ser enorme, porque o comércio de Seu Florduardo era bem em frente ao coração da cidade: a estação da Estrada de Ferro. Ali chegavam as tropas de burros trazendo mercadorias e as enormes comitivas trazendo centenas de bois para serem embarcados para os grandes centros: Rio, São Paulo e Belo Horizonte. Tropeiros e vaqueiros, sedentos e esfomeados, sem dúvida faziam parada obrigatória na frente da casa de Seu Florduardo.

Fico imaginando o pequeno Joãzito atrás do balcão, quieto, só ouvindo as histórias mirabolantes narradas naquele jeito mineiro de contar. Ele mesmo admitiu que isso foi parte importante da sua literatura:

“nós, os homens do sertão, somos fabulistas por natureza. Está no nosso sangue narrar histórias; já no berço recebemos esse dom para toda a vida. Desde pequenos, estamos constantemente escutando as narrativas multicoloridas dos velhos, os contos e lendas, e também nos criamos em um mundo que às vezes pode se assemelhar a uma lenda cruel.”

E diz explicitamente que prestava atenção às histórias narradas no meio em que vivia:

“Eu trazia sempre os ouvidos atentos, escutava tudo que podia e comecei a transformar em lenda o ambiente que me rodeava, porque este, em sua essência, era e continua sendo uma lenda.”

Quando visitamos o museu, vimos que o quarto de Joãozito ficava bem na entrada da casa, perto da rua e em frente a toda a movimentação da estrada de ferro. Descendente de duas famílias de criadores de gado, Joãozito passou a amar os bois, os burrinhos, os cavalos e a movimentação dos homens que os conduziam. Em sua literatura, os animais terão uma posição importante, bastando citar “Conversa de bois” e “O burrinho pedrês”. Riobaldo chega a dizer: “cheiro de boi, sempre alegria faz”. O ídolo de João Guimarães Rosa na sua infância era um menino um pouco mais velho do que ele, de 12 anos, chamado Zezé Correia, já capaz de tocar uma boiada e de amansar um animal rebelde.

Já mais crescido, quando estudava em Belo Horizonte e vinha de trem passar as férias em Cordisburgo, Rosa gostava de cavalgar até as fazendas da região, sem dúvida para pensar vendo a natureza e os animais. Gustavo, Yan e eu, visitamos uma fazenda onde Rosa ia muito durante a adolescência, a Fazenda Serandi. Foi uma indicação de Brasinha, que vai aparecer na próxima história.

No museu havia uma linda exposição acerca dos pássaros presentes em Grande sertão: veredas, outro grande amor de Rosa. Muitas vezes a presença das aves tem um valor simbólico: o pequenino e charmoso Manuelzinho-da-Croa é o símbolo maior do amor entre Riobaldo e Diadorim. Conforme diz este Riobaldo, recordando com melancolia seu amor por Diadorim muitos anos depois:

“o manuelzinho não é mesmo de todos o passarinho lindo de
mais amor?…”

Por fim, para dar uma chave de ouro ao nosso primeiro dia em terra rosiana, fomos a um delicioso restaurante de comida mineira, onde a visão de uma feijoada fumegante com direito a torresminho alegrou nossa vista. Ainda por cima o estabelecimento tem o nome de uma novela de Guimarães Rosa: “Sarapalha”, a história de um desentendimento entre primos por causa de uma morena muito bonita, de olhos pretos que foge com um boiadeiro…

Só podia ser, porque se houvesse um rei em Cordisburgo ele teria que saber amansar cavalo, montar em lombo de burro e conduzir boiada.