ANDREQUICÉ, TERRA DE MANUELZÃO
Guimarães Rosa ergueu uma catedral enigmática dos labirintos da alma humana chamada Grande sertão: veredas. Um dos encontros mais importantes para que isso acontecesse, foi o que se deu entre o então diplomata e o vaqueiro Manuel Nardy, por todos conhecido como Manelão e rebatizado por Rosa como Manuelzão. Manuelzão era um homem de quase dois metros, olhos azuis e porte elegante. Um sobrinho o definiu como “valente, justo, corajoso, paquerador, vaidoso, misterioso”. Era um exímio vaqueiro, capaz de domar qualquer animal e capataz da comitiva encarregada de levar uma boiada em um trajeto de 240 quilômetros em maio de 1952. Como o dono do rebanho era primo de Rosa, o escritor se juntou aos vaqueiros e aproveitou a viagem para colher informações minuciosas sobre a fauna, a flora e sobretudo sobre os costumes daqueles homens do sertão. Manuelzão foi sua principal fonte, a quem o escritor, montado na mula Balalaica, com sua cadernetinha espiral pendurada no pescoço, perguntava dia e noite sobre tudo. Para desespero de Manuelzão que não aguentava mais explicar tudo quanto é nome de árvore, de pássaro, de flor e planta.
Ele achava que o moço vindo da cidade iria desistir de participar da comitiva. Estranhou quando o sujeito não aceitou ser chamado de doutor e pediu pra ser chamado de João Rosa. O que Manuelzão não sabia é que Guimarães Rosa nascera no interior de Minas e que seu pai era dono de uma venda bem em frente à estação de trem onde chegavam as comitivas trazendo o gado que iria ser mandado para Belo Horizonte, Rio e São Paulo. O menino Joãozito ali, atrás do balcão, deve ter ouvido muitas histórias de tropeiros e de vaqueiros e era fascinado por bois. Aliás, continuou a ser por toda a vida. No segundo dia da comitiva João Rosa já estava adaptado: como todos os outros, acordou às 4 da manhã, comeu feijoada, tomou um gole de pinga e um café antes de seguir viagem.
Rosa deve ter vibrado muito com os aboios, as canções que os vaqueiros cantavam pra conduzir o gado e também por prazer. Manuelzão era bom nisso e sempre pensando em rabo de saia, cantava assim:
“Ribeirão das águas claras,
Bebedor das andorinhas,
Pensamento dessa moça,
Meu coração adivinha.
Eh, boi, eh, boi…”
O material das cadernetas de anotações de Rosa feitas na viagem de 1952 está hoje depositado na USP e foi transformado no livro fac-símile A boiada. Logo nas primeiras páginas existe a seguinte anotação sobre o vaqueiro e guia de Rosa: “Ô, homem de pólvora quente!” (Manuelzão). Na novela “Uma estória de amor (Festa de Manuelzão)”, Rosa descreveu assim o seu amigo:
“Manuelzão, ali perante, vigiava. A cavalo, as mãos cruzadas na cabeça da sela, dedos abertos; só com o anular esquerdo prendia a rédea. Alto, no alto animal, ele sobrelevava a capelinha. Seu chapéu-de-couro, que era o mais vistoso, na redondeza, o mais vasto. Com tanto sol, e conservava vestido o estreito jaleco, cor de onça parda.”
Rosa não estava errado ao falar do temperamento quente de Manuelzão. Segundo um sobrinho, Pedro Fonseca, autor do livro O xale de Rosa, mais jovem Manuelzão sonhava se juntar ao bando de Lampião, só não conseguindo por conta da morte do cangaceiro. Manuelzão, aliás, embora ótimo contador de casos, evitava falar sobre essa época. Teria ele trabalhado como jagunço? Em Andrequicé há boatos a esse respeito e talvez tenha sido uma fonte para Rosa também a esse respeito. O que se sabe com certeza é que Manuelzão percorreu todo o sertão de Minas chefiando comitivas, levando boi pra lá e pra cá, a toda hora cruzando o rio São Francisco. Isso deu a ele um conhecimento insuperável das coisas que mais interessavam a Rosa.
Nos últimos vinte anos de sua vida, Manuelzão se fixou em Andrequicé, um pequeno distrito de Três Marias e que fica a 60 Km da Fazenda Sirga, de onde saiu a boiada em 1952. Dona Márcia, a cozinheira da história de ontem (O Noivado eterno) ainda se lembra de Manuelzão e de suas histórias. Andrequicé aparece apenas uma vez em Grande sertão: veredas:
“Ainda o senhor estude: agora mesmo, nestes dias de época, tem gente porfalando que o Diabo próprio parou, de passagem,
no Andrequicé. Um Moço de fora, teria aparecido, e lá se louvou que, para aqui vir – normal, a cavalo, dum dia-e-meio – ele era capaz que só com uns vinte minutos bastava… porque costeava o Rio do Chico pelas cabeceiras!”
Manuelzão conhecia Andrequicé desde 1942 , quando veio trabalhar com Chico Moreira, exatamente o primo de Guimarães Rosa mencionado acima. Àquela época, Andrequicé era apenas um lugarzinho de passagem de boiada e de tropa. Só trinta anos depois é que Manuelzão se mudaria para lá. Hoje há o Museu Casa de Manuelzão, simples e emocionante, com alguns objetos e lindas fotos do vaqueiro. Do lado de fora da casa, há também o indispensável forno de barro para fazer pão e biscoitos. Foi praticamente a única casa dele mesmo que teve em vida, já que sempre trabalhou e residiu na terra de fazendeiros.
Mas além de Manuelzão, este lugarejo bem pequenino guarda outro segredo de Rosa que pode ter passado desapercebido. Riobaldo, em meio a muitos perigos, vive invocando a sua Nossa Senhora da Abadia, a quem ele pede até que o defenda do pior inimigo:
“Outro – o figura, o morcegão, o tunes, o cramulhão, o debo, o carocho, do pé-depato, o mal-encarado, aquele – o-que-não-existe! Que não existe, que não, que não, é o que minha alma soletra. E da existência desse me defendo, em pedras pontudas ajoelhado, beijando a barra do manto de minha Nossa Senhora da Abadia! Ah, só Ela me vale; mas vale por um mar sem fim… Sertão. Se a Santa puser em mim os olhos, como é que ele pode me ver?! Digo isto ao senhor, e digo: paz.”
Ora, quem é a santa que tem direito a procissão festa todo ano em Andrequicé, será que vocês podem adivinhar? Claro que acertou quem disse Nossa Senhora da Abadia.Por falar em igreja, o irreverente Manuelzão brincava com a localização da igreja, dizendo que em Andrequicé tudo era diferente: o cemitério é na entrada e a igreja fica de costas para a cidade.
Não duvido que haja muitos outros mistérios a descobrir em Andrequicé. Uma história muito bacana, para fechar a prosa de hoje, ocorreu quando estávamos indo, por culpa minha, até o campo de futebol. No caminho, vimos uma casa muito, muito simples, sem pintura, nada, só no tijolo. Na frente tinha uma bouganville esplendorosa (que está na foto desta postagem). Uma moça, que varria as flores caídas no chão e nos advertiu:
– Vocês vieram tirar, meu pai mata vocês, ele adora esse bougainville.
Em meio a uma condição material tão humilde, o pai não pode emassar e pintar as paredes, mas soube vestir a casa de beleza.
Rosa sabia das coisas, esse povo de Andrequicé é mesmo especial.
(Continua amanhã)