/Histórias do sertão – Brasinha e o santuário da memória

Histórias do sertão – Brasinha e o santuário da memória

Em Cordisbugo, na mesma calçada do Museu Guimarães Rosa, apenas uma dezena de metros adiante, há talvez uma das lojas mais curiosas do mundo. É a loja do Brasinha. Brasinha é um sessentão moreno, sertanejo de firmes barbas brancas, rijo e forte, aparentando uns dez anos a menos. Tem belos olhos azuis e um sorriso bom e bom.

Sua loja tem o nome oficial de “Empório do Brasinha”. Logo na frente, a placa: “Aqui já é o sertão”. O ambiente tem um delicioso perfume de incenso, a queimar no fundo da sala. Lá dentro, tesouros e mais tesouros: objetos de uso cotidiano do povo do sertão, uma verdadeira história da cultura material do sertão de Minas. Brasinha conhece cada objeto e cada um tem uma história, que ele conta com prazer. Afinal, como ele nos explica com indisfarçável prazer, seu propósito é usar os objetos para produzir histórias, para que as pessoas contem histórias, a sua história e logo a história do sertão mineiro.

Brinco com ele que aquela é uma loja anticapitalista, onde nada se compra e nada se vende. Ele ri generosamente. É feliz consigo mesmo. Conhece seu lugar no mundo, conhece seu mundo, gosta do seu povo.

Ele tem um projeto cujo nome nasceu da conversa entre dois senhores: recordância. As crianças vêm até a sua loja e ele conta histórias. Diz que as professoras pediram objetos emprestado e ele topou com alegria, mas que achava melhor que as crianças buscassem objetos (e suas histórias) nas próprias famílias. Disse a ele que o historiador inglês Paul Thompson menciona um projeto semelhante em seu livro sobre a História Oral, Vozes do Passado. Fico de trazer um na próxima visita.

Muitos turistas, encantados, entram no estabelecimento de Brasinha e começam a perguntar a ele o preço de um ou outro objeto. Ficam um pouco desapontados e muito surpresos quando Brasinha lhes diz com delicadeza que nada está à venda. A partir daí por vezes sai alguma prosa. Na verdade, Brasinha se mantém financeiramente a partir de uma loja ao lado, espécie de mercado variado, dirigido pela sua mulher. A mulher administra o concreto e ele o imaginário.

Brasinha é um sábio sertanejo, um erudito não somente dos muitos livros que leu, mas de lugares, rios, pessoas e suas histórias. Ele as conta com a sutileza de quem domina completamente a narrativa, te hipnotizando feito uma sereia sertaneja a quem entregamos nossos ouvidos e nossa capacidade de sonhar. Gustavo, Yan e eu ficamos levitando.

Seria impossível contar aqui tudo que ele compartilhou conosco naquela conversa. Brasinha começou a se interessar pelo universo rosiano a partir de uma conversa com um vizinho, um senhor bem bacana chamado Juca Bananeira e que aparece na novela “Burrinho Pedrês”. Aquilo despertou Brasinha para a leitura da obra de Rosa. Para ele, o interesse maior é perceber o quanto de sertão há ali. Passou a conhecer todos os lugares mencionados na literatura rosiana.

Em seguida conta uma história de Juca Bananeira com Guimarães Rosa. Juca contou a Brasinha que era vizinho do pai de Rosa, que o contratou para ver se o filho deixava de ser esquisito. O menino não gostava de jogar bola, nem de matar passarinho, nem de participar das caçadas do pai. Vivia pedindo aos viajantes revistas em línguas que ninguém lia e pior, gostava de fingir que estava oficiando missa. Juca ficou encarregado de levar Joãozito para brincar, para jogar bola. Mas depois fez o desanimado relatório a Seu Florduardo:

– Num adianta não, o minino só fica lá sentado no chão lendo. Se a gente tira o livro ele pega um pedaço de pau e fica desenhando no chão…

Outro causo interessante de Brasinha: quanto ao pacto de Diadorim com o Diabo, um amigo que nunca leu Guimarães Rosa teria contado que ele se dá examente como descrito em Grande sertão: veredas, meia-noite e porca retornando galinha com pintinhos. A crença local é que o pacto deve ser feito debaixo de um Pau Capa Rosa, uma árvore vista com temor.

Mas a melhor história, Brasinha guardou para o final. Disse que era amigo de Manuelzão e que teria perguntado ao velho vaqueiro o que achava de Grande sertão: veredas. Manuelzão, do alto dos seus quase dois metros e de toda uma vida perseguindo rabo-de-saia, teria respondido:

– Acho Riobaldo um bobo. Ele fica o tempo todo com aquela mulher disfarçada de homem e não descobre nada?