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Histórias do sertão – Seu Toco Pequi – Parte 1

HISTÓRIAS DO SERTÃO – SEU TOCO PEQUI – Parte 1

Fechamos com chave de ouro a nossa viagem pelo sertão de Rosa. No último dia antes do retorno ao Rio, conhecemos Seu Toco Pequi em Cordisburgo. Ou melhor, eu conheci, porque Gustavo e Yan já o conheciam de uma viagem anterior. Gustavo se lembrava mais ou menos onde era a casa e fomos andando e perguntando. Logo uns meninos que estavam na rua brincando nos indicaram, cidade pequena todo mundo se conhece.

Fica num bairro popular de Cordisburgo, pertinho de um pequeno estádio de futebol, o Laduzão. É uma casinha muito simpática, bem direitinha, com quintal e tudo. Seu Toco Pequi nos recebeu com muita simpatia. Ele é um homem dos seus setenta anos, magro, firme, empertigado mas gentil. Tendo perdido os pais muito cedo, foi criado pelos avós e seu avô, homem severo, lhe apresentou o cerrado e suas riquezas. Trabalhou na roça na infância. Na vida adulta, foi para Rio e São Paulo trabalhar e ganhar a vida, o que conseguiu apesar de muito preconceito contra o “mineiro”. Como a vida não é só trabalho, também foi mestre de Folia de Reis.

Ao retornar a Cordisburgo, pode se dedicar a sua paixão maior, que o tornou famoso na cidade e na região, o uso curativo das ervas do cerrado, que ele conhece como ninguém e cujo poder ele mesmo já sentiu na pele na juventude, quando se curou da doença de Chagas com plantas medicinais. Hoje ele é um “raizeiro” de mão cheia, capaz de entrar na mata como quem lê um livro. Ele conhece todo o tipo de erva curativa ali presente. Como ele mesmo já explicou em um poema, Pacari é boa pra gastrite, Congonha pro coração, Cipó-orelha-de-cachorro pra curar machucado, Cigana contra doença venérea, Pau-doutor pra úlcera estomacal, Pau Magro para emagrecer e por aí vai.

Sua paixão pelo Cerrado é enorme e transparece em cada fala. Se preocupa com a destruição crescente. Lembro de uma palestra do músico Makeli Ka em que ele descreveu como o cerrado é desmatado. Um forte trator ligado a outro por uma corrente de ferro vai arrastando todas as árvores do caminho, enquanto todos os tipos de animais e pássaros vão fugindo, desesperados com a literal destruição do seu mundo. Sai o Buriti, “verde que afina e esveste, belimbeleza”, e entra o eucalipto mortal. Seu Toco Pequi não perdoa, diz que no eucaliptal não dá nem cobra. Nem nenhum tipo de passáro.

Poucos sabem, mas o Cerrado é um bioma bem mais antigo do que a Amazônia. Se a Amazônia demorou 3 milhões de anos para se formar, o Cerrado demorou 10 milhões. Ou seja, é mais complexo e mais frágil. Mais da metade desse ecosistema já foi destroçado, em boa parte para virar carvão.

Guimarães Rosa, que citou quase mil espécies de plantas em seus livros e era também um apaixonado pela natureza do sertão, sem dúvida adoraria conhecer Seu Toco Pequi, um daqueles mineiros de fala mansa, que sabe muito e gosta de ensinar proseando, sem fazer grande alarde. Ele vai colocando as ervas na mesa e explicando para que servem, enquanto um papagaio fora da gaiola, sem nenhuma corrente, vem beliscar carinhosamente seu pescoço e sua orelha.

Um momento que também foi bacana e bem alegre foi quando Seu Toco Pequi lembrou dos cantos e danças que havia antigamente e onde ele era bastante presente. Falou do Batuque Recortado, que tinha versos “saidinhos” e devia ser uma ótima oportunidade para a paquera:

“Moeu, moeu,

Virou bagaço,

Vira morena,

Me da um abraço.”

Nessa hora ele canta e dança, numa espécie de sapateado com ritmo perfeito. Seu Toco Pequi sabe das coisas, esse homem devia ser um perigo num baile.

(continua)