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Leandro

LEANDRO

Era uma vez um rapaz grego apaixonado por uma jovem sacerdotisa de Afrodite encerrada numa torre. Todos os dias ele nadava até o lado de lá do Helesponto (atual estreito de Dardanelos) para namorá-la, guiado por uma luz que a amada acendia no alto da casa. Uma noite de tempestade apagou a lanterna e Leandro morreu afogado. No dia seguinte, a moça, chamada Hero, vendo o corpo inerte do amado sendo batido pelas ondas na praia, juntou-se a ele na morte.

Foi assim que ele mesmo me contou a origem do seu nome: Leandro. Estavamos no hall do prédio onde nós dois trabalhávamos naquela universidade em Niterói. Nossos encontros eram sempre muito breves e fortuitos, mas para mim muito agradáveis e marcantes. Por coincidência, ele e eu ingressamos no Departamento de História no mesmo ano: 1984. Eu era apenas um menino, vocês sabem. E ele era um homem maduro e um dos nossos intelectuais mais conhecidos e celebrados.

Creio que a primeira vez em que o vi foi numa daquelas reuniões de Departamento que valem por todo um péssimo curso de Ciência Política e por uma excelente aula de Filosofia. Depois de meia hora, não há quem não indague acerca da finitude da existência e da finalidade da vida. Eu estava sentado perto dele e fiquei admirado com a expressão séria e concentrada que ele mantinha o tempo todo. Pensei que deveria ser fruto de muitos anos de militância ou talvez de algum tipo de resignação filosófica.

Nada disso. Ele estava desenhando caricaturas muito bem feitas e absolutamente impiedosas de todos aqueles que iam “à tribuna”. Sentei-me ao lado dele, que diante do meu espanto, deu uma olhada sorrateira e marota que parecia dizer: “Não conta pra ninguém, garoto”. Ele já sabia que diante da estupidez da pequena política a melhor arma é o humor. Não lembro de ter visto ele se manifestar naquelas reuniões. Ele tinha lutas maiores a lutar.

Era um homem de luta. Luta política, luta intelectual e ideológica. Mas parecia querer encarnar o adágio de Che Guevara: “sem perder a ternura”. Foi amigo de José Guilherme Merquior, um intelectual que se definia como liberal e a quem ele conheceu em uma sessão de cinema. Quando as patrulhas questionavam essa amizade, dizia tão simplesmente que era sim amigo do José Guilherme e que havia inimigos com os quais se aprendia mais do que com os amigos. Ou seja: aprendemos mais com quem pensa diferente do que com quem pensa igual à gente.

Seus cursos lotavam. Em parte, para ter aula com aquele professor tão famoso. Em parte, para aprender com ele, que muito sabia. Mas o que impressionava os alunos, assim eles me contavam, era o trato afável, a maneira tranquila e carinhosa de se dirigir a todos eles e elas. O ambiente era tão árido que não havia sequer um lugar para tomar café, para comer um sanduíche. Mas há um tablado de madeira do qual os estudantes se apropriaram para suas reuniões, para suas dinâmicas, para seus encontros. Numa homenagem singela mas muito bonita, batizaram aquele espaço de liberdade com o seu nome.

Algumas vezes o vi chegando mais cedo para ver o pôr-de-sol na Baía. Seus olhos, aqueles belos olhos que tinha, estavam sempre brilhando de vida. Ele era muito gentil com o professor iniciante, da mesma forma que era com todos. Nunca ouvi ninguém falando mal dele, ninguém com raiva dele. Na academia de hoje, mais conflagrada do que o Oriente Médio, isso é praticamente um milagre. Ele era um homem muito bonito. Mas ao conhecê-lo isso deixava de ter importância. Primeiro porque não demonstrava nenhuma vaidade e depois porque ele era encantador de outra forma.

Toda a vida passou nadando nas águas perigosas do estreito, com a diferença de que a luz que o guiava nunca se apagou. Sua adesão firme ao marxismo era uma forma de crença na humanidade e na força invencível da gentileza.

Salve, querido mestre Leandro Konder.

Foste um grego entre romanos…