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Mestre Gato, imperador do berimbau

MESTRE GATO, IMPERADOR DO BERIMBAU

 

A cada dia eu descobria um mundo novo em Santo Amaro. Uma das pessoas mais bacanas e mais incríveis que conheci foi Mestre Gato. Negro de pele luzidia e cabeça raspada estilo Michael Jordan, Mestre Gato tinha 60 anos mas parecia ter 20, com seu corpo atlético e elegante. Sua vida é o berimbau. Na Bahia o berimbau é praticamente um instrumento sagrado, cercado de regras quanto a seu uso. Quando Mestre Ivan me presenteou com um berimbau de sua lavra, saí carregando o presente pela rua todo feliz. Até que um rapaz, com muita delicadeza me interpelou, reparando que eu não sabia nem mesmo empunhar o instrumento:

– O senhor não joga capoeira, não é mesmo?

Mestre Gato teve a generosidade de me explicar a origem e a filosofia de cada toque de capoeira. O São Bento Grande e Pequeno e o Cavalaria ou Aviso, para avisar os escravos fugidos da aproximação do capitão do mato, com maior ou menor velocidade para indicar inclusive a proximidade ou não do inimigo. Colocou, a meu pedido, 5 músicas do seu fantástico CD de capoeira. Ele simplesmente explicou toda a história da escravidão e da resistência escrava, começando com o sussurro-respiração de quem não poderia cantar. A memória negra da resistência à escravidão é bastante forte no Recôncavo, ao menos entre capoeiristas e sambadeiros.

Para Mestre Gato, a capoeira veio antes do samba de roda. Acho que para ele a capoeira veio antes de tudo. Ele chama a minha atenção para o ritmo “moroso”, hoje em dia ausente na capoeira. Mestre Gato não mostra seu trabalho para qualquer um. Acha que muita gente vem a Santo Amaro, dá o bote e leva embora o que eles querem sem nunca voltar.

É músico profissional que trabalhou na Europa por 25 anos (73-98) como percussionista. Virginiano em busca da perfeição, Mestre Gato milimetrou a gravação de cada música (todas compostas por ele), afinando os berimbaus, marcando precisamente o tempo de cada música, enfim, esculpindo em som uma obra de arte, testemunho de toda uma vida. Ele reclama que há muita capoeira hoje sem filosofia, sem alma. Fala com carinho da fabricação do seu instrumento preferido (ele toca todos os de percussão), de que madeira utilizar (Biriba), de como cortá-la, vergá-la, do uso correto da cabaça, do dobrão. Só a madeira sofre uma preparação demorada, é deixada descansar por meses antes de ser cortada e utilizada.

Uma aula fantástica, que eu adoraria que fosse compartilhada com mais pessoas. Adoraria ver Mestre Gato oferecendo oficinas para os professores de primeiro e segundo graus da região, fazendo um livrinho acompanhado de uma ou duas músicas para ensinar a história da escravidão no Recôncavo. Isso é que é sensibilidade histórica, ele fala dos escravos e dos seus sofrimentos como se tivesse sido um deles. Enquanto as músicas vão tocando ele vai regendo os instrumentos imaginários me apontando quando cada um entra (tem um berimbau que faz a vez de um tambor de forma impressionante), extasiado com sua sinfonia da resistência negra.

Mas sem um pingo de rancor, sem um pingo de raiva. Apenas o orgulho pela força da música enquanto arma de resistência: graças ao toque de cavalaria no berimbau “o capitão do mato vasculhava tudo isso aí e não encontrava um [escravo fugido]” diz ele com a alegria de um menino travesso.