/Moleque abusado ou de como se faz um pagão empedernido

Moleque abusado ou de como se faz um pagão empedernido

Antes de abraçar a crença nos deuses gregos, sempre dei sinais de que minha relação com a religião instituída não seria das mais fáceis. Ainda bem criança, não gostava da disciplina da oração e minha mãe teve que me dar uma licença especial para eu conversar com Deus do jeito que bem entendesse. Depois, episódio já contado numa das histórias publicadas aqui, quase não fiz primeira comunhão porque desconfiei do suborno implícito no futebol depois das aulas de catecismo. Por fim, chegou a minha difícil adolescência. Ficava trancado no quarto lendo, se chegava visita lá em casa eu ia dormir só pra não ter que falar com ninguém. Dose. Um ogrinho em botão.

Mamãe, após a perda de minha irmã mais velha, havia abraçado o espiritismo com fervor. Era a linha kardecista, ou de mesa. Até aí, tudo bem, todos nós temos direito a nossas crenças e ter fé não faz mal a ninguém. Mas mamãe decidiu me converter, logo eu, o mais selvagem e rebelde dos espíritos. E dá-lhe de me levar às sessões. E dá-lhe de tomar passe. Fui suportando com galhardia, reclamando um pouquinho mas sem brigar. Mamãe sabia que eu era osso duro de roer.

Foi aí que ela tentou um último recurso. No centro dela havia um senhor muito distinto, verdadeiro doutor em espiritismo. Este senhor ofereceu um curso de iniciação ao kardecismo para jovens. E eu fui nele matriculado inapelavelmente por mamãe. O doutor tinha bigodes que pesavam toneladas de autoridade e uma careca que parecia reluzir de erudição. Acreditava – como todos os doutores – na superioridade do seu conhecimento. Sabendo ou não, filiava-se a Platão, para quem o Mal é decorrência da ignorância do Bem. Logo na primeira aula ele já me mapeou como o seu contendor principal. Se ele me dobrasse, o resto da turma seria moleza.

Eu tinha quinze anos, cabelos compridos, uma sombrinha de buço, magro e ossudo feito um caniço de pescaria. Não parecia um adversário à altura para um kardecista tão bem fundamentado quanto ele. Pois é. Foi aí que ele me desafiou a apresentar na segunda aula uma exposição sobre o surgimento do espiritismo.

Na semana seguinte, chamei a História e a Literatura para me ajudarem. Comecei falando da Revolução Industrial, da tremenda transformação e abalo que ela causou, da imposição de um novo tipo de relação social, econômica e humana com o predomínio absoluto do capitalismo. Minha hipótese era de que o espiritismo era apenas uma reação aos exageros do materialismo. Uma reação marcada pelo espírito cientificista do século XIX, pois a crença em espíritos e manifestações paranormais sempre existiu, o kardecismo é apenas uma tentativa de explicação.

Era apenas o começo. Minha “tese” histórico-sociológica poderia ser facilmente contestada. Mas aí eu entrei com a literatura. Havia lido um conto de ficção científica, não me lembro o nome do autor, em que de repente o mundo fica sem almas para encarnarem nos recém-nascidos. De fato, essa é uma questão, absolutamente lógica, da mais alta importância. As almas já estão prontas ou são fabricadas? Se já estão prontas têm que ter um número finito, não é mesmo? Sendo assim, talvez algum dia elas venham a faltar…

Coisa de adolescente. Hoje sei que religião é um sistema simbólico e que a lógica ou a história são menos importantes do que a fé e do que as práticas, os símbolos, os rituais. É uma criação humana que tem que ser respeitada.

Mas devo dizer que o careca bigodudo ficou totalmente paralisado e curiosamente mudo. Foi meu último contato com qualquer forma de religião organizada. Nunca mais fui às aulas de catecismo kardecista.

E ninguém pediu àquele moleque abusado para voltar.