NAMORA, AMÉLIA
“Que Deus entendeu de dar
A primazia
Pro bem, pro mal
Primeira mão na Bahia”
(Gilberto Gil)
Por uma maravilhosa ironia histórica, a mansão do Conde de Subaé, uma imponente construção do século XIX, hoje é a Casa do Samba de Santo Amaro, Centro de Referência do Samba de Roda. A linda casa foi erguida com a riqueza do antigo senhor de engenho onde trabalhavam centenas de seres humanos escravizados. Agora abriga uma associação destinada a proteger e estimular o samba de roda, patrimônio da nação brasileira e orgulho do povo baiano. E que em 2005 foi declarado pela UNESCO uma Obra-Prima do Patrimônio Oral e Imaterial da Humanidade.
Há uma intensa polêmica acerca da origem do samba, como se fosse possível marcar com precisão o surgimento de uma prática cultural coletiva que vai se desenvolvendo ao longo do tempo. Baianos e cariocas não se cansam de disputar essa primazia. Se me permitem o palpite, para mim não há dúvida que o samba nasceu na Bahia, mais precisamente no Recôncavo, na sua forma mais tradicional, de samba de roda. Nesta, um grupo de músicos homens, um trio com pandeiro, prato e faca e viola toca para uma roda de pessoas batendo palmas no meio da qual uma mulher dança. Em outra, considerada uma variação menos tradicional, chamada de samba corrido, ao centro podemos ter um par ou mais pessoas sambando. De qualquer forma, aqui temos a estrutura básica do canto responsorial africano: um ou dois cantores cantam a chula ou estrofe principal e toda a roda canta a resposta, também chamada de relativo:
“(Solo) Que é que Maria tem?
(Grupo) Tá doente.
(Solo) Que é que Maria tem?
(Grupo) Tá doente.
(Solo) Maria não lava a roupa
(Grupo) Tá doente.
(Solo) Maria não varre a casa.
(Grupo) Tá doente.
(Solo) Maria não vai pra rua.
(Grupo) Tá doente.
(Solo) Que é que Maria tem?
(Grupo) Tá doente.
Eu estava hospedado no alojamento do segundo andar, que foi construído pelo filho do Conde de Subaé para alojar o imperador Pedro II quando de sua visita a Santo Amaro, onde ele teria feito xixi num tamarindeirinho como lembra Caetano em “Trilhos urbanos”, mosaico de lembranças de sua terra natal. Mas o aposento onde fiquei parecia ser reservado antes a escravos, a julgar pela ausência de janelas propriamente ditas, substituídas por aberturas com treliças bem no alto da parede, inalcançáveis. Hoje é normalmente utilizado para receber grupos de samba de roda ou de capoeira que vêm se apresentar no belo jardim da Casa do Samba de Santo Amaro. Não podia ser mais simples: dez beliches e um banheiro.
Eu acordava bem cedo e ia logo tomar um mingau na baiana, fumegante e delicioso. As baianas funcionam como uma padaria onde as pessoas do povo vêm fazer um lanche, já que muitas vezes são obrigadas a sair de casa ainda de madrugada. Logo a baiana já me conhecia e sabia que eu tomava dois mingaus: tapioca e milho. No almoço era a hora de desfrutar a saborosa comida de Dona Maria, do outro lado do rio Subaé, uma senhora calada e severa mas que se desmanchava quando seu inesquecível feijão tropeiro era elogiado.
Além do interesse no samba de roda e no Recôncavo, eu também estava ali por outro motivo. Minha avó paterna sempre nos disse que sua família era de Santo Amaro. Contava inclusive uma história do avô de Caetano Veloso, do pai de Dona Canô. Disse que ele era um homem excepcional para o seu tempo, mantendo a porta de sua casa sempre aberta para todos, sobretudo músicos negros, sendo estigmatizado pela sociedade por conta disso. De certa forma eu fora a Santo Amaro buscar esse axé baiano da minha família. Tive a chance de visitar Dona Canô e contar a ela esta história do seu pai, que ela disse desconhecer, pois teria nascido quando seu pai já tinha certa idade.
Conheci muitas pessoas inesquecíveis, talentosas e cheias de vida, sobrevivendo com dificuldades em um Recôncavo que agoniza em termos econômicos há muitas décadas. Aqui os nomeio, numa humilde homenagem, pedindo aos deuses que sempre lhes sorriam: Mestre Ivan, Dona Nildes, Mestre Escovão, Mestre Adó, Adelma, Mestre Primeiro, Dona Nicinha, Guegueo, Rosildo, Mestre Gato, Laynne e muitas outras pessoas que lá conheci.
Santo Amaro é o coração do Recôncavo e foi no Recôncavo que o Brasil nasceu, com todas as suas contradições e possibilidades. É uma região culturalmente ímpar, em termos religiosos, musicais e artísticos (não sei onde colocar a capoeira, acho que entra nos três). E seus habitantes têm consciência disso.
Mas enquanto houver samba de roda, os baianos do Recôncavo continuarão afirmando a força da vida e do amor, com perdão da redundância:
“(Solo – Chula)
Minha sinhá, minha iaiá. (bis)
Quem tem amor tem que dá.
Quem não tem não pode dá.
Mulata baiana, quero ver palma zoá.
Chora mulata, chora
Na prima desta viola.
(Relativo – resposta)
Ô, vi Amélia namorando.
Eu vi Amélia.
Eu vi Amélia namorando.
Namora, Amélia.”