NO PÁTIO
Depois de ser aprovado no concurso, fui escolher a escola em que eu daria aula como professor de História na rede estadual. Nessa hora as lembranças de infância pesaram. Meu pai era professor na Universidade Rural e vivia trazendo presentes para nós de lojas que só existiam, àquela época, em Campo Grande. Campo Grande ficou para sempre associado à alegria e à festa. Além disso, eu tivera duas colegas muito queridas na graduação que moravam em Campo Grande. Elas andavam, pegavam um ônibus até o terminal, de lá outro ônibus para Niterói. Chegavam tão cansadas que sempre dormiam a primeira hora de aula, respeitosamente, na última fileira. Nós explicávamos a situação aos professores e professoras e ficava tudo bem.
Seja lá como for, na hora de escolher a escola, ignorei algumas bem mais próximas e cravei: Escola Raja Gabaglia, no centro de Campo Grande. Eu era bem jovem e sempre tive cara de menino. O diretor me recebeu desconfiado, mal humorado e mal educado. Olhou para mim e deve ter pensado: esse garoto não vai dar conta de dar aula de História. Passou o encargo para um professor mais velho e experiente, mas que havia obtido uma colocação pior no concurso. A meu encargo as aulas de O.S.P.B. Para quem não conhece: Organização Social e Política do Brasil, uma disciplina tornada obrigatória pela ditadura militar em 1969 e que só desapareceu em 1993. Por ironia do destino, o ex-adolescente rebelde ficava encarregado logo dessa disciplina. Acabou sendo bacana, como já contei em outra história.
Hoje eu queria falar de outra coisa. Queria falar da sala dos professores. Eu frequentei durante um tempo. Depois não consegui ficar mais lá. Era um lugar extremamente negativo. Minha memória deve ter apagado o que ela conseguiu apagar. Mas lembro de ao menos dois comentários, que dão o tom da prosa. Uma professora reclamava do fato de todos os alunos serem burros. Outro professor dizia que, com a minissaia que estava usando, logo determinada aluna iria aparecer barriguda. Sim, ele poderia ter dito grávida, mas até mesmo a futura chegada de uma nova vida era comentada com o termo mais rude possível. Se a Esperança entrasse naquela sala seria assassinada a golpes de marreta.
Diga-se de passagem que os alunos eram muito tranquilos. Não havia, àquela época, ao menos naquele colégio, problemas de violência, drogas, facções. Eles e elas reagiam muito bem aos estímulos, às propostas do professor. Eu tinha seis turmas de 50, perfazendo 300 alunos. Não lembro de ter sofrido qualquer indelicadeza da parte de nenhum deles. Pelo contrário, comigo sempre foram gentis e educados, mesmo que de início minhas aulas fossem maçantes e apesar do meu rigor nas avaliações.
Quase todos trabalhavam, a maioria ia e voltava do trabalho em um trem lotado e numa longa viagem. No primeiro dia eu fui de trem para ver como era e mesmo fora do horário de pico cheguei cansado. As condições em que estudavam eram péssimas. As salas de aula estavam quase às escuras, com muitas lâmpadas queimadas. Perguntei a eles se já haviam reclamado. Disseram que sim, várias vezes. E que aquelas lâmpadas que eu estava vendo ali haviam sido colocadas com o dinheiro deles.
Eu não entendia o ódio e o desprezo que muitos professores dirigiam aos seus alunos e alunas. Era um absurdo, uma injustiça e um suicídio pedagógico. Aquilo me fazia muito mal. Resolvi passar o intervalo no pátio, encostado no balcão da cantina, lanchando lentamente e observando a garotada. Não via a hora de bater o sinal e poder entrar na sala de aula novamente.
Porque a sala de aula, com muito esforço e trabalho, pode ser um espaço de diálogo e de troca mais feliz e divertido do que o recreio.