/O alegre encontro do sagrado e do profano

O alegre encontro do sagrado e do profano

O ALEGRE ENCONTRO DO SAGRADO E DO PROFANO

 

A praça central de Santo Amaro da Purificação é majestosa. Em torno dela, os sobrados onde antes a aristocracia tinha sua residência na cidade e onde ainda hoje reside a classe média local. Santo Amaro era tão rica que tinha barões e viscondes. Ainda uma vila, no último quartel do século XVIII a população já alcançava cerca de 15 mil almas. Um século depois, em 1878, existiam 129 engenhos de açúcar, 92 deles movidos a vapor. Essa imensa máquina produtiva se assentava na mão de obra de africanos escravizados. Em 1809 eles chegaram a se revoltar, embora tenham sido derrotados. Caminhando pela cidade hoje em dia, é impossível não perceber a predominância absoluta da população negra.

 

Eu já sabia onde moravam os “ricos”, agora queria saber onde moravam os pobres. Era fácil saber. Foi só ir me afastando do centro. Cruzei a linha férrea e tive certeza de que estava indo no caminho certo, ao ver que as residências se tornavam mais e mais modestas. Fui além e cheguei até uma estrada onde havia casinhas mui humildes. Era um dia de janeiro, de um céu azul impecável. À distância, eu via uma construção toda branca a brilhar ao sol. Fui para lá.

 

Ao chegar, descobri que era uma igreja de Nosso Senhor do Bonfim. Se as igrejas de Santo Amaro e de Nossa Senhora da Purificação impressionavam pela grandeza e pelo luxo, aquela igrejinha simples agradava por sua humildade e pela pintura perfeita, sinal de muita devoção. As centenas de fiéis que estava ali reunidos preparavam-se para a procissão de Nosso Senhor do Bonfim. Resolvi fotografar e filmar. Era uma procissão sui generis. Certamente que havia o andor com a estátua de Nosso Senhor do Bonfim, devidamente carregado pelos fiéis. Mas havia também, vejam só, duas bandas, uma liderando a procissão e outra na retaguarda. Uma tocava de cada vez, no que era uma óbvia competição para ver quem animava mais o povo.

 

A trajetória da procissão foi muito reveladora. O povão ali reunido foi na direção do centro da cidade, ou seja, do núcleo do poder e da riqueza. Ali deram uma volta completa na praça principal, como se reafirmando seu direito de circular naquele território. Mas voltaram à Igreja de Nosso Senhor do Bonfim localizada na “periferia”.

 

Além do belo hino a Nosso Senhor do Bonfim, que já foi gravado até por Caetano Veloso, filho daquela terra, tocavam-se animadas músicas de carnaval. E o povo da procissão evoluía como se fosse uma escola de samba sacro-profana, dançando, rindo. Ao contrário do mundo ocidental onde tudo sempre esteve separado na sua devida caixinha, a experiência brasileira sempre foi desse jeito, um alegre encontro do sagrado e do profano.

 

 

Reza a lenda que Nosso Senhor do Bonfim teria ajudado as tropas baianas durante a guerra pela independência, pelo fato de que os portugueses retiraram a imagem do santo da sua basílica. Nosso Senhor do Bonfim se relaciona a Jesus Cristo quando está ascendendo ao Céu e que na Bahia é associado a Oxalá. Isso não me surpreende. Para um povo tão sofrido, submetido a tantas dores, talvez não haja nada melhor do que celebrar a boa hora em que podemos nos elevar muito além dos sofrimentos terrestres. Afinal podemos encontrar no hino os seguintes versos, bastante apropriados a esta ideia de um encontro alegre entre o sagrado e o profano:

 

“Canta e exulta num férvido preito

A alma em festa da tua cidade”