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O amor ao chicote

Machado de Assis, com a lúcida ironia que o caracteriza, inclui um capítulo muito interessante no seu Memórias Póstumas de Brás Cubas, intitulado “O vergalho”, ou seja, o chicote. Sendo que o vergalho não é um chicote qualquer, é feito com o membro do boi ou do cavalo, cortado e seco. Quem o está empunhando é o ex-escravo Prudêncio, que agora possui um escravo, a quem castiga com vontade no meio da praça. Esta crueldade, Prudêncio a havia aprendido em pequeno, com o próprio narrador da história, Brás Cubas, que antes o fazia de cavalo, nele montando e fustigando-o com uma varinha para que desse voltas e mais voltas.

Brás Cubas, depois de impedir que o espetáculo violento continuasse, comenta o episódio:

“Era um modo que o Prudêncio tinha de se desfazer das pancadas recebidas – transmitindo-as a outro. Eu em criança, montava-o, punha-lhe um freio na boca, e desancava-o sem compaixão; ele gemia e sofria. Agora, porém, que era livre, dispunha de si mesmo, dos braços, das pernas, podia trabalhar, folgar, dormir, desagrilhoado da antiga condição, agora é que ele se desbancava: comprou um escravo, e ia-lhe pagando, com alto juro, as quantias que de mim recebera. Vejam as sutilezas do maroto!”

Este breve capítulo é profético: depois de montar uma sociedade baseada na escravidão e, portanto, na violência, o Brasil não irá tornar-se da noite para o dia um país pacífico, pois a violência vira uma linguagem, um modo de agir e de ver o mundo. Além disso, há também outro elemento: aquele que sofreu violência, ao deixar de estar subjugado, pode vir a tornar-se tão ou mais violento do que o seu opressor.

Conversando com colegas que ainda dão aula na universidade, fiquei surpreso. De uns ouvi que não gostam mais de dar aula. Outros, que não chegam a tanto, me comunicaram um mal-estar, uma inquietação e, para usar a palavra certa: uma sensação de medo. Medo dos alunos e alunas os acusarem de serem homofóbicos, transfóbicos, racistas, machistas etc e tal.

É quase uma situação inversa à de muitas escolas públicas onde professores são pressionados por ameaças de denúncias ao Escola Sem Partido como sendo esquerdistas, comunistas, adeptos da ideologia de gênero e por aí vai.

Mas vou me concentrar no caso da universidade que eu conheço um pouco melhor. Aqui há uma forte presença de minorias, organizadas em diversos grupos. O que é ótimo, excelente. A universidade, como o nome diz, deve ser um espaço plural e inclusive um berço para novas ideias e movimentos.

É óbvio que há muito a fazer no Brasil para defender os direitos, o respeito e a dignidade para minorias. Nossa situação é trágica no que diz respeito à situação da população historico-sociologicamente negra – sem dúvida nossa maior dívida social, no que tange aos homossexuais e trans (assassinados cotidianamente) e no âmbito da questão de gênero, em que a opressão sobre a mulher continua, a violência continua, o desrespeito continua.

Embora eu não seja especialista no assunto, me parece que para mudar esse quadro é necessária uma ação política ampla, um projeto educacional a nível nacional e obviamente uma participação bastante frequente e poderosa no campo da cultura. E é preciso mobilizar a sociedade civil e não somente uma minoria militante.

Era de se esperar que estes grupos existentes nas universidades e que proclamam representar as minorias – embora as minorias em sua maioria desconheçam totalmente a sua existência – resolvessem atuar efetivamente para transformar a realidade. Ao invés disso, muitos destes grupos se dedicam a patrulhar incessantemente os colegas e os professores, em busca de alguma denúncia espetacular, muitas vezes baseada numa interpretação superficial ou duvidosa. É que acusar dá prestígio, traz visibilidade para o movimento, em uma palavra, traz poder. Apenas dentro dos muros da universidade, é claro.

Não há o que os professores possam fazer. Tomemos o depoimento de um professor que disse o seguinte: se sou visto como branco, percebo que só há duas possibilidades. Ou sou tachado de racista ou de alguém que tem o discurso do colonizador, alguém que ao fim e ao cabo está querendo enganá-los. Talvez seja exagero deste professor, não sei. O que sei é que o clima nas universidades é muito ruim, pois não pode haver sala de aula enquanto espaço de troca quando a desconfiança já está instalada antes do professor ou professora começar a falar.

Este tipo de atuação agressiva, acusatória e praticamente inquisitorial não faz amigos. Simpatizantes destes movimentos, alguns deles pessoas que sempre os defenderam, são amedrontados pela constante ameaça de uma acusação infundada, impiedosa e de enorme repercussão. Não parece muito inteligente afugentar seus aliados no momento em que uma onda conservadora se avoluma de forma absolutamente assustadora, pois que muito bem articulada politicamente e perigosamente capitaneada pelo fundamentalismo cristão.

Eu mesmo posso dar um exemplo. Certa vez eu dei uma entrevista na qual eu lamentava a expansão precarizada da universidade, que ocorria em meio a um processo histórico da mais alta importância que era a entrada de negros e pobres na universidade, algo que poderia revolucionar a universidade e a sociedade brasileira.

Pois bem, o que aconteceu? Eu havia criticado a expansão, ou melhor, eu havia elogiado a expansão, mas havia apontado a contradição que consistia em fazê-la de modo precarizado. Como a expansão havia sido feita pelo partido então no poder e como o movimento estudantil era ligadíssimo ao partido no poder, decidiram me atacar. Modestamente, posso dizer que sempre procurei cumprir minhas obrigações de professor da melhor forma possível. O que restava a eles? Me atacar de outra maneira. Distorceram como quiseram a minha declaração, fizeram uma reunião e tiraram uma nota de um coletivo me acusando de racista.

Não tive direito de defesa. Tentei inutilmente entrar em contato com eles para conversar, mas jamais responderam às minhas mensagens.

O forte deles não é a conversa, é o chicote puro e simples.

Mas  a transformação do mundo nunca vai ser feita na ponta do chicote.