/O gigante sensível e a bola laranja

O gigante sensível e a bola laranja

Por questões de trabalho do pai, a família toda havia se mudado da Tijuca para os Estados Unidos, mais especificamente para uma daquelas pacatas cidadezinhas de classe média de New Jersey, cercadas de mega-shoppings por todo o lado. Meu sobrinho era um menino pacato, tranquilo, cuja timidez escondia um caráter firme, uma grande sensibilidade para as coisas humanas e uma inteligência acima da média. Tinha também quase dois metros de altura com doze anos de idade, o que não facilitava em nada a sua vida.

Eu, a tia dele, com quem eu era casado, e o pequeno Heitor, então com quatro anos, aceitamos o convite e fomos visitar a parte da família que agora morava na Terra de Tio Sam. Já estava fazendo bastante frio no finalzinho de outubro, mas fomos recebidos com muito calor humano. Os pais do meu sobrinho eram (são) um casal maravilhoso: a mãe, professora de geografia, era a senhora da calma e da ternura, mesmo com três filhos e uma situação totalmente nova para administrar. O pai, era elétrico, a alegria da casa, trabalhava duro sem reclamar e era muito carinhoso com as crianças e com a mulher.

Como era do seu feitio, ele nada dizia. Mesmo assim, percebi que meu sobrinho sofria. Talvez por ter tido, com o perdão da redundância, uma adolescência complicada, logo me identifiquei com a sua situação: de uma hora para outra, perdera todos os seus amigos, estava numa terra diferente e em muitos sentidos estranha, onde não sabia como agir. Para piorar, seu tamanho fazia com que ele chamasse atenção, o que era a última coisa que desejava.

Para relaxar, comecei a conversar com ele e perguntei se ele já havia arranjado alguma namorada, se estava interessado em alguma menina, enfim, como ia sua vida amorosa. Sua resposta me deixou totalmente espantado. Disse que ele e todos os outros meninos da sala viviam apavorados (isso foi há mais de vinte anos) quanto à possibilidade de serem acusados e processados por assédio sexual. E citou o caso de um colega de classe que estava exatamente nesta situação. Segundo ele, bastaria um menino passar a mão sobre o ombro de uma menina para estar sujeito ao devido processo legal. Meu sobrinho não era de exageros e o que eu li nos seus olhos foi um medo real.

Tentei o front esportivo e quis saber se ele estava no time de basquete da escola. Nova surpresa: não só não ingressara no time, mas nem tentara. Com aquela altura toda, naquela idade, era um desperdício. Ademais porque eu sabia que ele gostava de basquete e no Brasil jogava um pouco. Não me conformei com aquilo e o lembrei que os norte-americanos valorizam muito o esporte, que seria uma boa maneira dele ir se integrando um pouco mais. Disse a ele que iria treiná-lo e que ele iria entrar no time.

Naquela tarde mesmo começamos, numa quadra totalmente vazia e com uma temperatura abaixo de 10 graus. Meus conhecimentos de basquete eram apenas básicos. Mas eu sabia que minha tarefa ali era infundir-lhe confiança e determinação. Ele era um aluno espetacular, não era preciso explicar mais do que uma vez, demonstrando, para que ele logo repetisse inúmeras vezes até ficar realmente bom. Era que nem empurrar um filhote de passarinho pronto para voar. Eu sempre inseria algumas dinâmicas lúdicas: ao final de todo o exercício havia uma partidinha um contra um para ele mostrar na prática, diante de um adversário, o que já era capaz de fazer. Eu fazia também muitas brincadeiras, dizia que ele seria o astro e cestinha do time, iria dar autógrafos e que muitas cheerleaders iriam querer namorar com ele. Ele sabia que era brincadeira e que o mais importante era jogar, se divertir e fazer parte.

E assim foi. João entrou no time naquele ano. Depois virou o pivô titular da equipe mais vitoriosa da história da escola. Como ele nunca aceitou ser chamado de John, a torcida na arquibancada tinha que se virar para cantar seu nome brasileiro quase torcendo a língua: J-O-ÁO… Quem me contou tudo isso foi o pai dele, todo feliz. João é de uma humildade franciscana. Ele não queria ser famoso na escola nem arranjar um milhão de namoradas. Ele só queria jogar basquete e se divertir, colocar para fora toda aquela energia e alguma raiva das coisas chatas.

Detalhe, importante: além de reinar nas quadras, seu desempenho acadêmico era excepcional: o menino brasileiro era um dos melhores estudantes da escola.

Hoje, aos trinta e poucos anos, ele é matemático e professor na UFRJ, daqueles que se importam, que trabalham duro e vibram com as conquistas dos seus alunos. Além disso, faz teatro, já tendo se apresentado em algumas peças. Estuda literatura. E reza a lenda que bate uma pelada de basquete toda a semana.

Ele aprendeu que não adianta esperar que nos passem a bola, há que entrar em campo e conquistar o seu lugar.