O QUE CABE NA TAPERA II
Sabe como é sábado, a turma acorda mais tarde. Antes de começar o sarau a pequena sala já estava completamente lotada. E depois da apresentação da contundente e irônica poesia de Heitor Ferraz, já havia gente sentada do lado de fora, como aparece na foto. Não se notava, porque havia um silêncio sagrado, como já disse.
Veio então a poeta carioca radicada em São Paulo Marília Garcia. Um dos poemas que ela leu “hola, spleen”, é o Poema de hoje e vocês poderão conferir. O interessante deste poema é que questiona o fato de que um poema, a não ser que seja feito na hora – e talvez mesmo assim, é sempre sobre algo passado, quiçá sobre uma ideia ou pensamento que não é mais nosso, algo no qual não acreditamos mais. E também sobre a questão da voz, de como o poema toma corpo na leitura. O poema referido é algo mais subjetivo, pedindo do leitor ou leitora que preste atenção e faça silêncio, pois assim:
“pode ser que ouça
alguma mensagem
perdida no ar.”
A terceira e última poeta a se apresentar foi Joana Barossi, tradutora de Nicanor Parra, o grande poeta chileno falecido no início de 2018. Ela chegou a conversar com Parra, que abriu o jogo: não iria dar palpite algum sobre a tradução, que isso era problema dela, porque para ele a tradução era “uma expropriação revolucionária” do poema, já não pertencia ao autor. Mas que iria, sim, conversar com ela sobre outras coisas, que talvez a ajudassem a compreender a poesia dele e a traduzi-lo.
A primeira e talvez mais importante coisa que ele disse foi a questão da métrica, de como a classe dominante fala em uma métrica e o povo em outra. Parra decidiu adotar uma métrica popular. Joana Barossi, rindo, disse ter notado que Parra inclusive falava naquela métrica, ou seja, o homem falava em poesia. E mais, Parra, que era matemático, ficava mexendo os dedos enquanto ouvia ela falar. O que era? Ele estava contando as sílabas das frases de Joana…
Segundo ela, Parra escrevia por um motivo principal. Numa tradução literal de suas palavras, seria para “fuder com a paciência do leitor”, ou seja, para perturbar, para tirar do lugar a consciência burguesa. Ele mesmo se definiu no seu magnífico “Autorretrato”, cruel exposição do cotidiano de um professor de Ensino Médio:
Considerad, muchachos,
Este gabán de fraile mendicante:
Soy profesor en un liceo oscuro,
He perdido la voz haciendo clases.
(Después de todo o nada
Hago cuarenta horas semanales).
¿Qué les dice mi cara abofeteada?
¡Verdad que inspira lástima mirarme!
Y qué les sugieren estos zapatos de cura
Que envejecieron sin arte ni parte.
En materia de ojos, a tres metros
No reconozco ni a mi propia madre.
¿Qué me sucede? -¡Nada!
Me los he arruinado haciendo clases:
La mala luz, el sol,
La venenosa luna miserable.
Y todo ¡para qué!
Para ganar un pan imperdonable
Duro como la cara del burgués
Y con olor y con sabor a sangre.
¡Para qué hemos nacido como hombres
Si nos dan una muerte de animales!
Por el exceso de trabajo, a veces
Veo formas extrañas en el aire,
Oigo carreras locas,
Risas, conversaciones criminales.
Observad estas manos
Y estas mejillas blancas de cadáver,
Estos escasos pelos que me quedan.
¡Estas negras arrugas infernales!
Sin embargo yo fui tal como ustedes,
Joven, lleno de bellos ideales
Soñé fundiendo el cobre
Y limando las caras del diamante:
Aquí me tienen hoy
Detrás de este mesón inconfortable
Embrutecido por el sonsonete
De las quinientas horas semanales
Joana está traduzindo Parra e esperamos com alegria e esperança esta publicação.