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O rei da muqueca de Santo Amaro

O REI DA MUQUECA DE SANTO AMARO

 

Era de nobre estirpe santamarense. Filho de Dona Nicinha, uma das grandes damas do samba de roda, reverenciada por todos. O avô paterno, era o lendário Seu Popó do maculelê, devidamente homenageado por Caetano em sua música “Trilhos Urbanos”. Guegéo, fruto dessa linhagem, saiu um sujeito alegre e engraçado, que entendia de maculelê e sabia tocar cavaquinho, pandeiro, prato, todos os instrumentos do samba de roda, enfim.

 

Em Guegéo, assim como em Mestre Gato e outros, havia uma forte memória acerca da experiência da escravidão. Sentamos no banco de pedra do lindo pátio rodeado de árvores seculares da Casa do Samba. Guegéo, ao falar das agruras da escravidão, vira para mim com um sorriso acridoce e diz: “Nós sofremos muito, Marcos”. Como se ele também tivesse passado por tudo aquilo. Em certo sentido, passou e ainda passava. Ele transpirava uma consciência forte e arraigada de ser parte de uma história secular.

 

Enquanto generosamente tentava apimentar o meu toque de pandeiro, foi me contando histórias de uma tradição local acerca da origem do samba e do maculelê. Diz que seu avô Popó, que lhe transmitira aqueles ensinamentos, tinha aprendido aquilo tudo com um pai de santo. Diz que no dia dois de fevereiro os escravos resolveram sair com os “paus de grima” a despeito da oposição dos senhores e feitores e que disfarçaram a luta em dança.

 

Guegéo estava ligado às tradições culturais mais centrais do Recôncavo: maculelê e samba de roda. Mas o que ele gostava mesmo era de cozinhar.

 

Encontrei Guegéo na Casa de Samba de Santo Amaro e nossa amizade foi de combustão espontânea. Logo era Marcos, meu irmão pra lá e meu irmão Guegéo pra cá. Dois brincalhões juntos é um perigo. Me lembro do dia em que inventei um Pagode do Sapo, uma música para homenagear um feroz mestre de capoeira que morria de medo de batráquios. Mestre Escovão me deu a honra de fazer o acompanhamento no cavaquinho. Guegéo, que não esperava por aquela do carioca fazendo samba de roda, morreu de rir olhando espantado pro seu irmão.

 

Dia bom foi quando ele decidiu que ia fazer uma muqueca, um prato de origem africana. Fomos ao mercado de Santo Amaro e compramos tudo, começando por uma corvina de dois quilos. Eu ajudei lavando e cortando algumas coisas, mas ele fez tudo. Resolvi filmar e ele foi explicando, todo prosa. Demos gargalhadas quando, diante das câmeras ele disse que a corvina tinha sido pescada no Rio Subaé. Mestre Gato rondava, sentindo o aroma delicioso que vinha da cozinha.

 

Guegéo começou tirando as escamas da corvina com um garfo, enquanto o peixe ficava mergulhado no suco de limão. Ele ia fazendo tudo no melhor estilo baiano, com muita rapidez e sem nenhuma pressa. Além disso, ia me mostrando todas as técnicas e etapas, do peixe e do pirão. E ensinando suas máximas: “Não se machuca a pimenta sem sal”.

 

Depois sentamos os três para comer aquela muqueca maravilhosa. Na foto, Guegéo está alegre e orgulhoso. Mestre Gato parece ter tido uma experiência transcendental. Eu? Essa vida é cheia de dúvidas, mas eu tenho certeza de que naquele dia eu era tão simplesmente feliz.

 

Meu irmãozinho Guegéo nos deixou o ano passado.

 

Este texto é uma humilde homenagem do seu irmão carioca ao rei da muqueca de Santo Amaro.