O SÁBIO DE UM OLHO SÓ
Era na Bahia. Mais do que isso, era no Recôncavo, essa terra mágica onde o Brasil nasceu de um encontro violento entre índios, africanos e europeus. Terra do samba de roda e da capoeira. Lá estava eu, por uma dessas trapaças do destino, encarregado de fotografar um batizado de capoeira em Santo Amaro da Purificação, uma cidade tão importante no tempo do açúcar que não se contenta com um padroeiro ou padroeira só, tem uma dupla: Santo Amaro e Nossa Senhora da Purificação, cujas igrejas dividem a praça principal, uma de cada lado.
Gosto muito de capoeira, embora conheça muito pouco. Descobri que o mundo da capoeira está sofrendo grandes transformações a partir de seu processo de globalização. Alguns mestres se ressentem do fato de que muita gente ganha dinheiro com fotos deles, sem dar-lhes um tostão. Sendo assim, embora eu estivesse ali a convite de Mestre Carcará, dono da festa, prometi que daria a cada um um CD com todas as fotos que tirasse, o que efetivamente fiz.
Havia excelentes capoeiristas presentes, não há dúvida. Mas um deles literalmente entortou minha visão. Era um negro esguio de tranças rastafari e já quarentão. Seus movimentos às vezes pareciam lentos, como se ele estivesse com sono, para de repente explodir em um gesto de incrível rapidez. Ele parecia feito de borracha e gingava com tanta malemolência que parecia até preguiça. Que nada, era malandragem pura, ele estudava o adversário, sempre deixava o outro tomar a iniciativa para depois jogar com inteligência e sagacidade. O mais bacana, todavia, não era nada disso e sim o fato de que ele parecia se divertir jogando. Sem debochar do adversário, mas demonstrando enorme alegria de estar ali. Ele era um “angoleiro” de primeira categoria.
Descobri que se chamava Mestre Ivan, o primeiro discípulo do grande mestre Ferreirinha de Santo Amaro. Quando conversei com ele, me pareceu tão escorregadio na conversa quanto era na roda. Mas ao perceber que eu não estava ali para levar vantagem alguma, foi gentil. De perto, percebi que Mestre Ivan tinha um olho só. Que parecia brilhar em dobro, um olho que olhava para você e via quem você era, um olho que pensava. Combinei então de levar as fotos na casa dele, que ficava em um bairro de má fama, um pouco mais afastado do centro.
Ele morava numa casa com enorme quintal, onde inclusive cortava a biriba para fazer seus berimbaus. Mestre Ivan vivia da fabricação destes instrumentos, bem como de pandeiros, que vendia para algumas lojas em Salvador. Enquanto eu conversava com ele, Mestre Ivan trabalhava sem interrupção, dizendo:
– Desculpe, Marcos, preto não pode parar de trabalhar nem um segundo.
Ele tinha mais duas bocas para alimentar: sua mulher e o filho desta, que à época tinha por volta de quatro ou cinco anos. Ele não era filho de Mestre Ivan mas adorava o capoeirista. Mestre Ivan era apaixonado pelo garoto, mas dava duro nele, confiando-me um segredo: pro cabra não ficar metido tem que ser três críticas para cada elogio. E sorria maroto e feliz.
Com seu filho biológico ele não tivera sorte. O rapaz se metera com um grupo de traficantes em Salvador e ficara devendo. Quando soube que seu filho estava jurado de morte, Mestre Ivan foi à favela de Salvador falar com o “chefe” do tráfico, pois temia que ele mandasse matar sua família. Apresentou-se dizendo que o chefe do tráfico poderia matá-lo, desde que não fizesse nada com sua família. O chefe ficou surpreso, mas garantiu a Mestre Ivan que ele e sua família não seriam atingidos, embora não pudesse perdoar seu filho. Mestre Ivan disse que quanto ao filho, não era problema dele, se havia se enfiado naquela, ele mesmo tinha que aguentar as consequências.
Mestre Ivan era do tipo que pensa rápido e fala devagar. Tinha soluções originais para os problemas. Notei uma barraca dentro da sua oficina e perguntei para que servia. Com a maior tranquilidade ele me disse que às vezes sua mulher ficava brava por isso ou aquilo e ele achava melhor dormir na barraca até a tempestade passar. Acho que ele devia registrar esse método revolucionário de apaziguamento conjugal. Não consegui saber muito sobre o seu passado. Sei que passou uma temporada na Ilha de Itamaracá, praticando com as ondas. Em se tratando de Mestre Ivan, não duvido de nada.
Pareceu, acima de tudo, um homem muito sofrido e muito feliz. Quando comentei algo sobre a felicidade com ele, sorriu com muita calma e me disse daquele jeito baiano:
– A felicidade vem é depois.
Mestre Ivan, o sábio de um olho só.