ELE
Foi um Natal diferente. A família resolveu assumir o verdadeiro caráter da nossa reunião. Passamos a noite comendo o lendário e mitológico bolinho de bacalhau de Dona Fernanda. E cantando samba. Meu cunhado no surdo, minha irmã no vocal, este que vos escreve no pandeiro e papai tocando o tamborim com precisão cirúrgica e alegria baiana.
Naquela madrugada ele teve um infarte. Sobreviveu, mas ficou com apenas metade do coração. Para compensar, parece que a alma dobrou de tamanho. Ele não reclamava de dor, não reclamava de tomar remédio, nem de fazer exame após exame. E estava sempre sorrindo. A qualquer hora do dia ou da noite que fossemos visitá-lo ele parecia estar feliz. Passou a gostar mais de abraços. E declarava o amor à mamãe hora sim, hora não. Nos poucos momentos em que ela saía de casa sozinha, em caso de máxima necessidade, vinha o mantra:
– Volta logo, meu amor.
A indesejada das gentes veio buscá-lo, covardemente, numa hora dessas, em que ele estava acompanhado de uma moça que trabalhava para eles. Uma doce pessoa, aliás. Ela ficou aflita e logo quis chamar a ambulância. Ele, tranquilo, disse a ela:
– Não precisa, fica aqui e segura a minha mão.
Ali ele deixava pra nós seu último presente. Feito o Menino acalmando Riobaldo diante das águas turvas do assustador Rio São Francisco, ele nos disse:
“Carece de ter coragem!”