/OS ESPARTANOS CARECAS

OS ESPARTANOS CARECAS

OS ESPARTANOS CARECAS

Para Sydenham Lourenço e os outros nove

Não é fácil contar uma história em que você é o vilão. Nelson Rodrigues dizia que a memória é uma vigarista. Ela não somente modifica, aumenta, diminui e distorce. A memória sobretudo apaga, cala, silencia. O episódio que vou contar hoje havia desaparecido da minha memória. Foi um ex-aluno, hoje um professor, que manteve viva a memória do episódio e gentilmente me escreveu relembrando o que havia acontecido.

O jovem professor, em seu primeiro ano, era capaz de chegar em casa e chorar ao lembrar da sua aula. Demorava para se acalmar e se conformar a ponto de conseguir dormir. O único jeito que ele conhecia era estudar mais e mais. Foi o que ele fez. Aos poucos, foi ganhando alguma confiança, foi começando a entender os caminhos da sala de aula. Foi se fortalecendo graças à generosidade de alunos e alunas que reconheciam seu esforço. E como todo professor, começou a elaborar algumas histórias que ele considerava não somente exemplares, mas também boas de contar.

Uma delas, tomada de empréstimo a Heródoto, falava dos espartanos penteando seus longos cabelos antes das batalhas. A vasta cabeleira era um símbolo aristocrático, pois todo o trabalho era realizado pelos hilotas, população submetida militarmente pelos espartanos. O professor convidava a turma a imaginar os pensamentos de superioridade e o ethos guerreiro fortemente interiorizado naqueles que eram preparados para a guerra desde a mais tenra infância. O pentear dos cabelos, ao mesmo tempo que era um exercício de concentração individual antes do matar e morrer da guerra, também era um ritual de reafirmação da identidade espartana.

Talvez seja bonito. O problema é que tudo isso é baseado em apenas uma breve passagem de Heródoto e na interpretação dos valores da sociedade espartana. Mas não há o cruzamento com outras fontes. Não se sabe mais nada acerca disso.

Pois bem. Naquele dia, sua aula era às 20 horas. O professor da aula das 18 horas faltou. Um grupo de alunos foi para o bar conversar e tomar cerveja. Preocupados com o jovem professor que costumava fazer uma verdadeira pregação religiosa a favor da pontualidade, eles voltaram bem a tempo da aula começar. Um deles, na casa dos seus vinte anos, já começava a mostrar sinais de calvície e como era de se esperar sofria, como sofreu naquele dia, brincadeiras feitas pelos colegas.

O jovem professor, vaidoso e embevecido com seu próprio saber, começou a contar a história dos espartanos que penteavam seus longos cabelos antes das batalhas. Os amigos do futuro careca, percebendo o potencial cômico da situação, olharam para ele, quase rindo, como se dissessem: “É, amigo, não iria dar para você ser espartano”. Ele contra-atacou, perguntando ao jovem professor:

– Professor, o que acontecia com os espartanos que ficavam carecas?

Seus colegas de bar não aguentaram, explodiram numa sonora gargalhada. O jovem professor perdeu o controle. Começou a dar uma bronca no rapaz dizendo que a aula era séria, não era palhaçada. O aluno se defendia, dizendo que ele estava somente com uma dúvida. Seus colegas, por sua vez, achavam aquilo tudo muito engraçado e continuavam a rir. O professor ia ficando mais e mais nervoso, vendo sua bela história ser motivo de chacota. Enfurecido, passa a condenar o grupo que estava rindo e, por fim, expulsa cerca de dez alunos.
É óbvio que ele estava errado. Ainda haveria de aprender a ter algum humor. E, principalmente, a admitir o que ele não sabia.

De fato, nem à época, nem depois, tive alguma notícia dos carecas espartanos. Poderia ter dito, tão simplesmente: ótima pergunta, eu não havia pensado nisso. A fonte que temos é unicamente Heródoto e ele nada diz a respeito. E pronto.

O fato mais incrível dessa história, todavia, não é, na verdade, a falta de controle e o autoritarismo de um jovem professor. Pois expulsar alunos é negar-se ao diálogo, é negar a própria missão do professor. Felizmente, os alunos em questão superaram o episódio e tornaram-se professores, creio que melhores do que o jovem professor que os expulsou, por terem aprendido uma lição essencial, mesmo que pelo mau exemplo.

O mais surpreendente, todavia, é o total apagamento desta história da minha lembrança. Logo eu que lembro tanto de histórias da sala de aula.

Riobaldo, contando ao doutor da cidade a sua vida, tentando encontrar um significado para a perda do seu grande amor, adverte:

“Contar é muito, muito dificultoso. Não pelos anos que se já passaram. Mas pela astúcia que têm certas coisas passadas – de fazer balancê, de se remexerem dos lugares.”

Hoje em dia, quase trinta anos depois e com tão poucos cabelos que dificilmente poderia ser um espartano, fico pensando em quantos erros cometi em sala de aula. Quantos alunos e alunas devo ter, de alguma forma, machucado, eventualmente traumatizado? Quantos episódios ruins minha memória apagou?

A única coisa que posso fazer agora é pedir desculpas, humildemente. Começando por Sydenham Lourenço, que me recontou essa história muitos anos depois, pedindo desculpas também ao aluno que hoje deve estar totalmente careca e à brava turma que desafiou a ditadura do jovem professor com a arma mais contundente já inventada: o bom humor.