ROSIANA 078 – O mundo idealizado da cavalaria faz parte da matéria de Grande sertão: veredas – é igual em crueza e idealização
“Por sua vez, o Grande Sertão: Veredas, encampando o sertão, encampa também o imaginário do sertão. Nada mais verossímil que um jagunço, ademais um jagunço parcialmente letrado, narrando sua vida, a ela se refira em termos de novela de cavalaria. Afinal, esse é o imaginário de seu convívio.” (61)
“O mundo idealizado da cavalaria faz parte indissolúvel da matéria tratada no romance. Não entra de fora, mas por dentro, por via da experiência do narrador-personagem. Tanto assim é que Riobaldo só se utiliza, ao longo do livro todo, de duas personagens literárias para fazer comparações, e ambas do mesmo texto. Ele conta que leu Senclér das Ilhas e nunca menciona a História de Carlos Magno e dos Doze Pares de França; mas é deste último, e relacionados entre si, que saem o Almirante Balão com que compara Ricardão e Gui de Borgonha, com quem se compara. A matéria imaginária é aquela que está entranhada na própria matéria, contida pelos limites desta.” (61)
“Por outro lado, é preciso lembrar também que aquilo que o senso comum nos insinua quando ouvimos falar em cavaleiro andante é apenas uma visão idealizada e moderna; imagem que reúne e acentua alguns traços éticos – pureza, honra, lealdade, fidelidade, decência etc. – está bem longe, já não direi da sua realidade histórica, mas dos próprios textos da novela de cavalaria. E nisto, (61)
em sua terrível crueza e impiedade, a novela de cavalaria está bem mais próxima do Grande Sertão: Veredas do que o leitor moderno poderia supor.” (62)
“Quanto à História de Carlos Magno e dos Doze Pares de França, nessa mesma versão que corre o sertão, baste um exemplo. A Princesa Floripes, personagem feminina central da primeira parte, amada de Gui de Borgonha e filha do inimigo Almirante Balão, instiga Carlos Magno a (62)
matar o pai dela, feito prisioneiro, porque este se recusa à conversão; o que é de fato feito em seguida.” (63)
“Grande Sertão: Veredas não é menos cru, com suas traições, torturas, estupros, assassínios, sadismos; mas também não é menos idealizado, em suas lealdades, amores, sentimentos de honra e outros belos sentimentos.” (63)
GALVÃO, Walnice Nogueira.
(1972) As formas do falso. Um estudo sobre a ambiguidade no Grande Sertão: Veredas. São Paulo: Editora Perspectiva. pp. 61-63.