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Sampa em um guardanapo

SAMPA EM UM GUARDANAPO

 

Fui a São Paulo pela primeira vez quando tinha 12 anos. A família estava em viagem para inaugurar o Corcel. Queríamos achar uma pizzaria tradicional chamada Moraes, localizada na Brigadeiro Luís Antonio e que existe até hoje. Havia a lenda de que os paulistas, quando percebiam um sotaque carioca, davam indicações erradas de propósito. Bobagem. O paulistano interpelado por papai fez questão de literalmente nos levar até lá. Bendito sujeito, foi a melhor pizza que eu já tinha comido na minha vida.

 

Depois voltei a São Paulo no início da década de 80, quando era estudante de História. Fui ver a novidade dos centros culturais e de suas exposições, maravilhado, pasmem, com o vídeo VHS (de fita), que só chegou ao Brasil em 1982. Também visitei São Paulo para assistir a uma palestra de Jorge Luís Borges e para ver um filme-mudo com acompanhamento ao piano, aventura que já contei aqui. E de dois em dois anos eu comparecia à Bienal do Livro de São Paulo, voltando para o Rio carregado.

 

Numa destas vezes, não me lembro como, acabei me hospedando na Residência Universitária da USP, que ficava no Bom Retiro. Uma noite, estava assistindo o Jornal Nacional – não havia tevê à cabo na época, crianças -, em uma pequena sala em que uma dúzia de estudantes se espremiam diante de um pequeno aparelho. Não sei por que cargas d’água eu fiz um comentário político que era para ser engraçado. Mas teve uma moça que discordou veementemente, irritada comigo. De briga eu fujo sempre, pode ter certeza, mas de vez em quando topo um debate. O JN rolando e a gente ali discutindo, mas com civilidade.

 

Ela era uma moça bonita, com longos cabelos negros e eu me perguntava se aqueles olhos de fogo ficavam assim somente em debates políticos. Seja lá como for, entediados em ficar ouvindo aquele bate-boca ou com a intuição de que havia algo mais no ar, devagarinho todos abandonaram a salinha, deixando eu e ela sozinhos. Nem preciso contar, não é? Nunca pensei que fosse agradecer ao Cid Moreira (fast Wikipedia: antigo apresentador do JN)… Até que nos demos bem, mas a política, que havia nos ajudado, logo atrapalhou. Ela se dizia trotskista e eu era somente flamenguista. Não quis ir comigo à Bienal, provavelmente achava aquilo pequeno-burguês demais ou coisa parecida. Eu fui e de brincadeira comprei uma história de Trotski em quadrinhos para lhe dar de presente. Esqueci que ela levava tudo a sério enquanto eu levava tudo na brincadeira. A moça dos cabelos pretos ficou de fato ofendida e rompeu.

 

Já o namoro com São Paulo continuou sempre. Foi lá que fiz o doutorado com minha amada mestra (já, já vou fazer uma história com ela) que mudou para sempre a minha vida. Ironicamente, foi em São Paulo que iniciei a viagem que me levou de Atenas a Acari, da Grécia antiga ao Rio de Janeiro. Depois continuei indo a São Paulo por diversos motivos, quase sempre para curtir a cidade onde tenho amigos e agora até uma linda afilhada. Com alguns amigos de um núcleo de estudos de esporte da UFF, fiz uma excursão de um dia maravilhosa, com direito a café da manhã numa padaria perto da Paulista, visita do Museu do Futebol, Livraria Cultura, almoço na Liberdade, jogo do Juventus na Rua Javari com canoli e tudo e, para coroar, jantar na Pizzaria L’Speranza na 13 de maio. É uma pizzaria tão italiana que Don Vito Corleone lá jantaria se viesse a Sampa.

 

Meu sentimento por São Paulo não pode ser descrito em prosa. Sei que não sou poeta, mas tomo a liberdade de transcrever aqui uma espécie de poema que anotei num guardanapo de papel há mais de trinta anos:

 

escrevo num guardanapo de boteco

título: São Paulo

dedicado a Ivone, a testemunha de jeová

os cinemas pornôs de São Paulo

os canarinhos de Petrópolis na hora do rush

metrô norte sul leste oeste

milhões de pães de queijo, quentinhos

o forró de Bom Retiro

o pedinte expõe a sua chaga à visitação pública

uma combinação de travestis e MacDonald’s

– Vou deitar no banco, moço. Tou com sono, não se assuste.

– Não me assusto

O que é que a japonesa tem ?

Teixeirinha à meia-noite as lojas vendem

montes de livros

nada tão diferente de uma pessoa quanto outra

imagine-as aos milhares

sábado à tarde o torturador de plantão segue com seu ofício

professor de cursinho

compro tangerinas. Ai que bela a estação da Luz!

Leio e penso. o barco d’alma singra um mar de dor e solidão

é bom que escureça, é bom que o tempo passe

o Flamengo ganhou: 3 x1

os guardanapos estão acabando, preciso ser conciso,

preciso ser…