SENTIMENTO DO MUNDO – A memória involuntária despertada em Drummond por uma coleção de velhos jornais itabiranos
“Quando atravessam a camada anestesiada que resiste a eles, no entanto, os sinais (ou os sinos) da memória involuntária repercutem em conteúdos difusos, intensos, inconscientes, mais além da vivência factual e da recordação datada, chamando à tona, inteira, a aura não verbal do vivido, com todas as refrações que a compõem. Um exemplo flagrante desse fenômeno psíquico e poético encontra-se no relato, feito por Drummond, das associações despertadas nele por uma velha coleção de jornais itabiranos, que lhe chega às mãos em 1950. Como é próprio da memória involuntária, as lembranças em cascata jorram de um estímulo sensível, no caso as ‘páginas amarelecidas’ que ‘cheiram preciosamente a 1910’ (…) cujas notícias longínquas exala ‘o menino daquele tempo’ que ‘vai pelas ruas, sobe nas árvores, contempla longamente o perfil da serra, prova o gosto dos araçás, dos araticuns e dos bacuparis silvestres – tudo isso que o jornal não tem, mas que se desenrola do jornal como de uma fita
mágica‘ (o grifo é meu). Como o ‘divertimento japonês de mergulhar numa bacia de porcelana cheia d’água pedacinhos de papel’, que, molhados, se estiram formando ‘flores, casas, personagens consistentes e reconhecíveis’ (metáfora proustiana do momento mágico da Recherche em que a madeleine desperta o passado de Combray, a ‘fita mágica’ do jornal itabirano o transporta ao frescor de um tempo subjacente em zonas despercebidas da psique, que acorda de repente da dormência: ‘e subo de novo a ladeira do Bongue, revejo Lilingue, Chico Zuzuna, o velho Elias do Cascalho, feiticeiro africano, o poço da Água Santa, os coqueiros de espinho na estrada para o Pontal, o pequeno cemitério do Cruzeiro guardando meus parentes, e o frio das manhãs serranas, e as namoradas intocáveis no alto das sacadas de arabesco, tudo isso misturado, longínquo, próximo, nítido, cheirando absurdamente a jasmim – e perdido.'”