/Tio Geraldo e Mané Cotó

Tio Geraldo e Mané Cotó

TIO GERALDO E MANÉ COTÓ
 
Lembrei de Tio Geraldo e Mané Cotó. Por causa de Machado de Assis.
 
Debatemos um conto genial e pouco conhecido de Machado de Assis no Grupo de Leitura: “O Tobias e o Teles”. Nele, o Bruxo do Cosme Velho faz uma radiografia crítica e bem humorada do funcionamento da máquina política no Brasil imperial: a montagem de alianças a partir de relações pessoais, o nepotismo, a corrupção eleitoral, o uso de capangas, o tráfico de influência, a subserviência ao governo central em troca de benesses e muitas outras “maravilhas” da democracia à brasileira que continuam vivas mais de 150 anos depois. O conto gira em torno da amizade, da disputa e da posterior reconciliação entre dois chefes de uma vila: o juiz de paz Manoel Tobias e o subdelegado Chico Teles, duas figuras tão medíocres quanto poderosas.
 
Isso me fez lembrar uma temporada de férias que passei na casa de Tio Geraldo em Recife. Tio Geraldo era casado com Tia Velinda, irmã de papai. Era um homem alto, de rosto arredondado, muito tranquilo, fala mansa, olhos faiscantes de vivacidade e ironia. Eu e ele nos dávamos muito bem, mesmo durante a minha adolescência, o que era um milagre. Apaixonado pelo Botafogo, Tio Geraldo sempre começava a conversa comigo da mesma forma, falando naquele sotaque açucarado de pernambucano:
 
– Marquinho, como vai o seu Mengo?
 
Tio Geraldo era formado em Direito. Mais jovem, tinha dirigido a Penitenciária de Itamaracá e orgulhava-se do fato de que na sua gestão os presos podiam circular por toda a ilha. Naquele momento e por muitos anos, Tio Geraldo era deputado federal. Ele achava graça das minhas pesadas invectivas contra a Ditadura Militar e apenas sorria, sem jamais rebater qualquer uma das minhas afirmativas. Sabendo que eu era estudante de História, me fez um convite especial aproveitando que eu estava em Pernambuco:
 
– Marquinho, quer ir a Apicucos conhecer Gilberto Freyre?
 
Eu, que até então não havia lido uma página sequer do autor de Casa Grande & Senzala, recusei com ardor, dizendo que Gilberto Freyre era de direita, apoiador do regime militar etc. Tio Geraldo sorriu docemente, como era do seu feitio. Percebo que ele estava me dando uma chance ímpar e me arrependo até hoje de não tê-la aproveitado. Afinal, se Antonio Candido e Jorge Amado saudaram Casa Grande & Senzala como obra revolucionária para a sua época, eu deveria ter tido a humildade de ler a obra antes de falar alguma coisa acerca do seu autor.
 
Anos depois iria aprender que até a forma malemolente de Tio Geraldo falar é explicada em Casa Grande & Senzala: os africanos falavam o português a sua maneira, retirando a dureza das consoantes e acentuando a suavidade das vogais: senhora virou sinhá e logo depois iaiá. No Brasil, até a nossa maneira de falar é africana.
 
Tio Geraldo me colocou novamente na cara do gol e desta vez eu aproveitei. Sugeriu que eu fosse a Caruaru ver a famosa feira. Não sei como está hoje, mas no início da década de 80 era admirável. A impressão é de que a cidade inteira virara um mercado, coberta de barracas. A organização era impecável, por setores: queijo, farinha, cachaça, bodes…
 
Um dia, Tio Geraldo me fez um outro convite. Perguntou se eu queria saber como era feita a política no Brasil. Disse que sim, é claro. Então eu deveria ir a uma reunião com candidatos a deputado estadual por Pernambuco. E que deveria prestar atenção em um tal Mané Cotó. Tio Geraldo, rindo, me disse que Mané Cotó era um comerciante com dinheiro que decidira se candidatar por um motivo original. Havia reclamado com um deputado estadual e o político lhe respondera: “Por que você não vira deputado então?”. Mané Cotó ficara tão fulo da vida que tomara aquilo como uma questão de honra: tinha que ser deputado.
 
Fui à reunião. Era uma espécie de encontro de donos de rebanhos de gado, ou, como diz Machado, de rebanhos de carneiros. Mané Cotó era uma figura pífia, para ser delicado. Machado de Assis já o havia decifrado a natureza daquele tipo de “política” em 1865, quando publicou “O Tobias e o Teles” na Semana Ilustrada. Tio Geraldo nada dizia, apenas sorria levemente e de vez em quando me olhava como se dissesse: “Está vendo só, Marquinho?”.
 
Mais de trinta anos depois, percebo que o Mané Cotó cresceu, se multiplicou e tomou conta da Presidência, do Congresso, do Senado, do S.T.F., dos governos estaduais e prefeituras… Estamos cercados de Manés Cotós por todos os lados.
 
Não consigo deixar de lembrar de Tio Geraldo sorrindo e perguntando africanamente:
 
– Marquinho, como vai o seu Mengo?