Estou em pleno processo de desconstrução. Não me vejo como historiador ou antropólogo, apenas como alguém que estudou essas “coisas”. Claro que toda formação profissional é também uma deformação existencial. Meu lado antropológico tende a se divertir em quase todos os lugares e situações. Na academia, por exemplo. Uma fauna maravilhosa para quem souber reconhecer as espécies. Vou inventar os nomes OK? Cleópatra é uma moça negra belíssima, de corpo estonteante, que malha sem parar e vive olhando de cara feia para o espelho. Ou ela nunca vai ficar satisfeita ou acha que o espelho não está refletindo corretamente as suas curvas e a sua beleza. Não tenho coragem de perguntar. Shirley é uma travesti que tem tudo: a simpatia, o jeito feminino, a alegria. Menos o physique du rôle: é forte que nem um touro, um zagueiro-zagueiro com coxas da largura de um tronco de baobá. Que ela continua a engrossar com exercícios infindáveis de pernas. Roberto é o mais famoso sócio-atleta da casa. Um rapaz branco, de cabelos sempre muito curtos, corpo de Mr. Universo tatuado de cima embaixo. Tímido, quando não está levantando 800 quilos fica com os olhos colados no celular. Tem apenas um amigo, Ricardo, que é a versão negra e extrovertida de Roberto, sem as tatuagens. Só conversam entre eles e até dão risadas. O caso mais escandaloso é de Telma, uma mulher dos seus quarenta e cinco anos. Só faz exercícios gemendo. Mas não é um gemidinho qualquer, parece o orgasmo de uma capivara. Se é que estes gentis animais vocalizam o prazer desta forma. A academia inteira ouve sem necessidade de sistema de som. Fico só imaginando o quanto ela deve gritar em ocasiões realmente prazerosas.
Como eles me veriam? Este estranho coroa narigudo, de camisa do Olaria, que fica na esteira ouvindo podcasts de literatura em inglês. Tudo isso era só para contar algo bacana. Sempre falo com os professores e professoras, dou um bom dia ou boa tarde. Claro que rola alguma interação: a uma professora que sempre me chama de garoto – ela deve ter uns trinta anos, eu disse que os pesos ficam mais leves quando me chama assim. E aos poucos fui ficando amigo de um sujeito muito retraído, bem longe do estereótipo de professor de academia. Quando vi, ele estava me contando sua vida, a ponto de me chamar a um canto para mostrar as mensagens que escreveu para uma namorada que o abandonou. Abaixando a voz, perguntou se eu chorava por amor. Feito um bezerro desmamado, respondi. Ao pegar o celular, disse que havia se contido, que tinha moderado na escrita. Mas o que pipocava na tela eram palavras de um homem totalmente apaixonado. O amor é um subversivo contumaz, desconhece fronteiras. Ali, em meio àquele templo de Narciso, o que eu via era alguém tombado pelas flechas de Eros.