UM RIO DE FOLHAS SECAS
Nuvens brancas finas feito sonhos passeavam no céu que estreava um azul novinho em folha naquela tarde de verão. Ao que parece elas iam para o sul, talvez chegassem a tempo de pegar uma praia.
Estávamos na rua do Ouvidor, que durante muito tempo foi a via mais chic desta cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, que precisamente naquele dia celebrava seu aniversário. Era a rua das lojas de modas francesas, da livraria Garnier, frequentada por Machado de Assis, e de muitos outros estabelecimentos de luxo. Uma vez por ano, como lembra João do Rio, era invadida por cordões cheios de vida e furor, marcando uma presença negra em um espaço simbolicamente branco.
Onde está a morena?
São Sebastião foi festejado como se deve: uma pequena estátua de madeira dos estátua do santo foi solenemente depositada na mesa em torno da qual sentavam-se os músicos da roda de samba. As duas pequenas flechas que atravessam o corpo do padroeiro até parecem poemas perto das armas de calibre pesado que têm atravessado o cotidiano dos cariocas.
Além do santo, era o momento de celebrar vinte anos da Folha Seca, a mais carioca das livrarias. Ali, naquele pequeno quadrado mágico criado por Rodrigo Ferrari e defendido por ele com unhas, dentes, simpatia e inteligência, cabem todos os sonhos do mundo. Cabe o que o Rio tem de melhor: o samba, as religiões afro-brasileiras, o futebol, nossos cronistas e romancistas. Em poucos lugares da cidade se respira tanto o ar do Rio de Janeiro.
A morena não vem?
Por falar em escritores, claro que haviam de estar presentes. Marcelo Moutinho, jornalista e contista, recentemente premiado pela Biblioteca Nacional, apareceu com seu melhor sorriso e isso não é pouca coisa. Também veio Fernando Molica, apelidado de O Ruivo (não o chamem assim porque ele não gosta), um jornalista de mão cheia e um romancista de primeira.
Tive a honra de sentar-me à mesa com Álvaro Costa e Silva, o Marechal, um jornalista tão apaixonado pela cidade que publicou o Dicionário Amoroso do Rio de Janeiro. E o que dizer de Alberto Mussa, um escritor cuja obra já monumental parece querer fixar de forma romanceada toda a história do Rio de Janeiro?
Quem sabe a morena chega de repente?
Comentei com Mussa que há um conto dele, “A milhar do galo” (Os contos completos), parece a Ilíada, afinal ele conta de forma épica uma guerra por causa de uma mulher. Que não sejam gregos e troianos e sim entre os morros do Borel e do Andaraí, são apenas circunstâncias históricas. A humanidade é una, como já lembrava Homero, o primeiro a falar de folhas secas (Ilíada VI):
“As gerações dos mortais assemelham-se
às folhas das árvores
que umas os ventos atiram no solo sem vida;
outras brotam na Primavera
de novo por toda a floresta viçosa.
Desaparecem ou nascem os homens da mesma maneira.”
O bonde já estava formado. Só faltava a música. E a turma não brincou em serviço. Começaram com “Estação Derradeira” de Chico Buarque, com o auxílio luxuoso de um sax, me deixando arrepiado:
“Rio de ladeiras
Civilização encruzilhada
Cada ribanceira é uma nação”
Tá quase perfeito, só falta a morena…
Foi nesta hora que chegou Mestre Didi. A Ouvidor, lotada, parou para ver ele driblar a multidão com aquela elegância que não existe mais. O sol parecia querer brilhar nos seus sapatos de couro bem lustrados. Chegou diante da livraria, abriu um sorriso matreiro diante do letreiro, empurrou a porta de vidro e entrou para dar um abraço no Digão. Digão não queria largar o Mestre, mas Didi só gostava de abraçar a bola. Com os olhos marejados de alegria, Digão não resistiu:
-Mestre, como foi que o senhor inventou a folha seca?
-Pois é, Rodrigo, esse segredo eu nunca contei a ninguém, mas como você me homenageou de maneira sincera, vou te dizer. Eu ainda jogava no Industrial lá de Campos. Um dia eu estava meio triste por causa de uma menina e sentei numa praça, olhando pra nada. De repente, comecei a ver como de vez em quando caía uma folha já seca de uma árvore em frente. Primeiro ela zanzava de um lado para outro, meio indecisa, depois, de repente, a folhinha tomava impulso e mergulhava a toda velocidade. Daí inventei de bater falta assim: ela subia, passava da barreira e quando parecia estar morta, descaía rapidamente para dentro do gol. Os goleiros ficavam parados, parecia que tinham sido hipnotizados…
-O senhor me conta como tem que bater na bola?
-Aí você já está querendo demais, menino. No aniversário de 50 anos eu conto…
Saudades da morena…
Enquanto esse papo inacreditável rolava dentro da livraria, lá fora o samba comia solto. Roda lotada, fervendo, todo mundo cantando. Sem querer, os deuses nos deram a prova de que o Rio de Janeiro continua vivo. O ótimo cantor Chico Alves anunciou que a próxima música seria uma parceria, vejam só, de Luiz Carlos da Vila e Aldir Blanc. Quando o surdo começa a dar vida a tudo, de repente a luz acaba, cortando o som do microfone e dos instrumentos. Só que não demorou um só segundo para que todos em volta começassem a marcar o ritmo na palma da mão, como se aquilo fosse uma roda de capoeira da época de Debret. O Rio ainda existe.
Tudo já parecia estar perfeito, exceto o ritmo de abastecimento de cerveja aos músicos, mas isso também é uma tradição carioca. O que ninguém esperava foi que ele chegasse. De terno branco, chapéu côco, cravo na lapela e o bom e velho pandeiro na mão, lá vinha João da Baiana. A multidão se abriu para ele passar feito as águas diante de Moisés. Ele chegou com um sorriso malandro que encantou as damas. E tomou conta do samba. Comandou a roda tocando Batuque na cozinha e outras músicas suas. Depois surpreendeu a todos tocando pontos de macumba em ritmo de samba, pois segundo ele num dia como aquele os orixás tinham que ser homenageados.
Digão estava passando perto da minha mesa e eu perguntei a ele se estava gostando da festa.
-Poxa, se eu não estiver gostando de uma festa, o problema é comigo, não com a festa, festa é sempre bom.
E concluiu com aquela sabedoria carioca que sobrevive a tudo:
– Tirando tudo que tá ruim, tá tudo ótimo.