/VOCÊ ACHA QUE CACHAÇA É ÁGUA

VOCÊ ACHA QUE CACHAÇA É ÁGUA

VOCÊ ACHA QUE CACHAÇA É ÁGUA

Ele estava casado. A mulher havia terminado de escrever a tese de doutorado, cuja presença ostensiva praticamente transformava tudo em um relacionamento a três: ele, ela e a tese, nem sempre nessa ordem. O alívio era grande, mas havia ainda o rito da defesa. Que seria em uma universidade americana. Ela informou que depois da defesa, que lá não tem esse nome, era tradição haver uns comes e bebes por conta do candidato ou candidata.

Filho de mãe portuguesa e pai baiano, de comes e bebes ele entendia e pediu para cuidar disso. A comida, obviamente, seria comprada lá mesmo na terra do Tio Sam. Mas quanto à bebida… Pensou em algo original e inesperado, pelo menos para os americanos. Comprou uma bela garrafa de cachaça e alguns copos rústicos de barro, para dar um certo toque exótico.

A defesa correu muito bem. A candidata expôs com muito segurança o seu trabalho e os professores, sentados em meio ao público, cada um em um lado, fizeram uma ou duas perguntas cada um. O tom era de curiosidade, não de arguição. Afinal, eles não vieram de uma tradição inquisitorial como a nossa.

O orientador era um figura respeitadíssima, um senhor bem avançado nos anos, um intelectual de primeira categoria. Devia ser titular, emérito, benemérito, o escambau. Alto, pesadão, corpulento, ele caminhava com dificuldade e, ao que parecia, sentindo dores.

Mas aquele era um dia de festa. Ao terminar o ritual, que nesse caso pareceu meio que um procedimento laico despido de um caráter mais emocional, era a hora de comer e beber. Apresentei a cachaça ao orientador com toda a pompa e circunstância que a bebida merece. O homem gostou. Gostou até demais. Virou não sei quantos copos. Ela ficou preocupada com a saúde do mestre, mas não cabia a ela, nem a mim, dizer a ele que parasse de beber.

Corta para o dia seguinte. Ela vai até a universidade receber o certificado de que concluiu o doutorado, ainda com a mente preocupada: como estaria o velho professor? Por coincidência ele a encontra no corredor. De boca aberta, ouve ele dizer, com um sorriso no rosto e as mãos levantadas para o céu:

– Não sei que bebida era aquela, só sei que dormi feito uma criança …