21 de outubro às 14:29 __Coluna “Reflexões de um Burrico, por Marcos Alvito*____
Dia de São Bartolomeu ou da formação dos oficiais da Polícia Militar do Rio de Janeiro.
Antes da meia-noite, montavam-se barricadas improvisadas com camas e preparavam-se artefatos, como as chamadas “bombas hidráulicas”: sacos com água e sabão para fazer escorregar os bichos que vinham atacar os apartamentos. “Bichos” no caso, eram os alunos do primeiro ano do curso deformação de oficiais da PM do Rio de Janeiro. Na passagem do dia 30 de novembro para o 1o. de dezembro, depois de passar um ano inteiro sofrendo trote nas mãos dos “veteranos” do terceiro ano, a “bicharada” tinha o direito de atacar o alojamento dos aspirantes a oficial. Se conseguissem invadir o território sagrado, é aí que o bicho pegava, ou melhor, os bichos. É aquilo que todos na escola conheciam como “Noite de São Bartolomeu”, nome que remete de forma exagerada ao massacre de protestantes na França do século XVI.
Depois de alguns anos lecionando o curso “A Polícia e os pobres” para oficiais da PMERJ, decidi que era hora de tentar entrevistá-los. Consegui gravar entrevista com oito oficiais, de graus hierárquicos e tempo na corporação bastante variados, desde um tenente até um coronel aposentado.Claro que a presença do gravador limitou e muito o depoimento que generosamente me concederam. Mas houve um tema abordado por todos com uma certa liberdade e que eu percebi ser chave para entender a formação deles: a questão do trote.
Ao contrário do que acontece em determinados cursos universitários, em que o trote dura um dia ou no máximo uma semana, os oficiais que entrevistei sofreram um ano de trote antes de entrarem no tranquilo segundo ano e por fim chegarem ao terceiro ano quando passam a ser veteranos dispondo de um ou mais “bichos” para servi-los. O que o veterano podia pedir variava:engraxar sapatos, polir cintos, arrumar a cama eram solicitações comuns.Mas havia também as mais criativas como o veterano que, dispondo de três bichos fazia-os cantar como pássaros para despertá-lo. Um deles me contou ter “aloprado”, ou seja, ter se negado violentamente a seguir as ordens do seu veterano que o intimou a comer uma laranja com casca e tudo. Até aqui estamos no campo do que eles mesmo chamam de “trote moral”. Na hora do almoço, por exemplo, os “bichos” só comiam o que sobrava. Mas havia também o “trote físico”, como extenuantes sessões de exercícios, preferência de madrugada, para perturbar o sono dos “bichos”.
Teoricamente, o trote não existia e o “bicho” poderia se queixar com o oficial de dia, que anotava minuciosamente a reclamação. Jogo de cena. Imediatamente toda a escola se unia contra o denunciante e o perseguia até que ele pedisse para sair. Os oficiais que entrevistei foram quase unânime sem atribuir ao trote um papel central na sua formação. O “verdadeiro espírito do militarismo”, o “ser polícia”, para eles não era aprendido nas aulas de Psicologia, Estatística ou de Direito Penal e sim na relação bicho-veterano.Ora, afinal o que essa relação ensinava? Para começar, ensinava hierarquia.Uma hierarquia tão imutável que uma vez bicho, para sempre bicho: mesmo coronéis têm que saudar seus veteranos de maneira especial toda vez que os encontram. É uma tradição absolutamente sagrada para eles. O veterano, na verdade, exigia mas ao mesmo tempo dava dicas de sobrevivência ao bicho e o “protegia” contra abusos de outros veteranos. Estabelecia-se uma relação pessoal totalmente fora das regras oficiais e que permite, mais à frente,montar redes de relacionamento invisíveis mas extremamente eficazes. E que podem ser acionadas para o bem ou para o mal.
O outro aprendizado, bastante óbvio, é o da violência inerente à formação do policial militar. Os oficiais entrevistados viam o trote como uma prova de fogo capaz de selecionar aqueles realmente “aptos” para o trabalho policial. A virtude central seria a coragem, ao lado da resistência física, da lealdade ao grupo e aos seus superiores. O trote também reforça o espírito de corpo do grupo, criando a sensação de pertencimento a um grupo especial, distinto e superior aos “paisanos”. No dizer de um Major, antes de, em suas palavras,entregar a alma dos bichos aos veteranos para o início do trote, a relação veterano-bicho era necessária para “inocular o vírus do meganha”. É aquilo que do ponto de vista da antropologia costuma ser chamado de rito de passagem, de transformação em um outro ser, em uma pessoa totalmente diferente.
Como a maioria dos oficiais por mim entrevistados cursou a escola durante a década de 80, não tenho condições de afirmar como se dá a formação atualmente. Mas são estes oficiais que hoje estão no comando das tropas da Polícia Militar. Os pilares básicos da corporação, devido ao seu caráter militar,são a hierarquia e a disciplina. Sendo assim, o espírito violento e arbitrário do trote que sofreram ainda sobrevive nas práticas de seus comandados. A militarização é sem dúvida um obstáculo à existência de uma força policial efetivamente cidadã. Enquanto isso, para nós paisanos a Noite de São Bartolomeu nunca acaba.
*Sobre o autor: O Burrico chama-se Marcos Alvito. É professor porque gosta sobretudo de aprender. Dá aula de História na UFF, mas faz pesquisa antropológica.
Tem sete livros publicados, mas trocaria um ou dois por saber tocar cavaquinho. Bate um pouco de pandeiro e até se atreve a cantar uns sambas e uma determinada ária de Puccini.
O cognome “Burrico” foi o presente de um colega de universidade,descontente com o fato do autor ter manifestado uma discordância de cunho político. Achou bacana, simpático até, pois o burro é um animal humilde e trabalhador. Saiba mais sobre o caso aqui –http://on.fb.me/1iuHvRC
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