/HISTÓRIA IMPRECISA DO BRASIL EM DUAS PÁGINAS

HISTÓRIA IMPRECISA DO BRASIL EM DUAS PÁGINAS

HISTÓRIA IMPRECISA DO BRASIL EM DUAS PÁGINAS

Para batizar a nova terra, deixaram de lado o nome religioso (Terra de Vera Cruz) e o nome poético (Terra dos Papagaios), adotando-se o nome puramente comercial, que lembrava o que se estava a fazer aqui: Brasil. Logo o solo em que tudo dá foi banhado de rios de sangue negro e índio para produzir açúcar, ouro e depois café. A escravização de milhões de seres humanos foi praticada em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. A colônia virou um país quando o príncipe e sua corte saíram correndo de Lisboa fugindo das tropas francesas de um auxiliar de Napoleão. Uma das primeiras coisas que criaram foi a Guarda Real de Polícia para colocar aquele mar de negros no seu devido lugar. Instrumento pedagógico: o chicote com várias pontas, apelidado de camarão. O príncipe torna-se finalmente rei depois que a Rainha Louca morre e alguns anos depois retorna a Portugal, deixando seu filho a governar. Assim é um soberano português que proclama nossa independência. Ficava tudo na mesma. Nossa primeira constituição nem sequer mencionava a existência da escravidão e nela só era realmente cidadão quem tinha terras. Fomos o último país na face da terra a abolir a vergonhosa prática e só o fizemos depois de todos os truques e adiamentos possíveis. É então que nossa república é proclamada, melhor dizendo imposta pela espada, já que não passou de um golpe militar. O povão, na verdade, gostava do imperador. E os republicanos odiavam o povão, sobretudo negros, pardos, índios, todos aqueles que eles viam como raças inferiores e incapazes de construir uma nação forte com ordem e progresso. Por isso criaram o Código Penal um ano antes da Constituição.Todo negro era vadio até prova em contrário. Todo sambista era malandro até prova em contrário. Candomblé e umbanda eram somente feitiçaria e loucura. E o futebol era somente para doutores de anel no dedo. Mesmo que mais de 80% da população fosse analfabeta e não pudesse votar, as eleições eram criativas: uns eram impedidos de votar, outros votavam duas, três vezes e havia até o fenômeno paranormal de mortos dando seu voto. A classe operária crescia, se organizava e começava a reivindicar. Mas a questão social era vista como questão de polícia: espancamento, prisões, exílio. Um novo arranjo social e político incorpora a questão social, devidamente enquadrada na ideia do trabalhador ordeiro, respeitador das leis e cumpridor dos seus deveres. Em troca, pela primeira vez tem algum direito, criando uma relação especial com aquele que aparece como seu benfeitor. Na nova narrativa, a nação incorporava valores e práticas da cultura popular, personificadas na figura do mulato e da mulata. Vem a Segunda Guerra Mundial e a palavra de ordem é democracia. Por aqui, era planta exótica, que dura 19 anos nessa primeira temporada, com direito a quase tudo: suicídio de presidente; golpe legalista para garantir a posse do candidato eleito, que sofre duas tentativas de golpe militar devidamente anistiadas; um presidente votadíssimo que renuncia sete meses depois, não sem antes proibir as brigas-de-galo; um vice-presidente que só pode assumir depois que se muda o regime para um parlamentarismo retirando o seu poder; um plebiscito de retorno ao presidencialismo, a promessa de reformas de base e, por fim, um golpe militar com pleno apoio da democracia mais poderosa do mundo. Depois vem uma ditadura de mais de vinte anos, com direito a prisões, tortura, censura, exílios e novamente a promessa de um Brasil Grande. Quando voltam aos quartéis, o país está falido: eles haviam multiplicado a dívida externa mais de dez vezes, em termos relativos, a inflação era alta, o Brasil continuava um país extremamente dependente, um país onde mesmo quando a economia ia bem o povo ia mal. Um dos países mais desiguais do mundo, sendo que aqui essa desigualdade tinha (e ainda tem) um componente “racial” muito claro. Ao fim do regime militar a expectativa de vida dos mais ricos era 15 anos maior do que a dos mais pobres. Em uma longa transição, o país fez sua segunda tentativa democrática. Começamos mal, elegendo um pretenso caçador de privilégios que em nome do combate à corrupção montou um esquema mafioso jamais visto em um país famoso na prática deste esporte. Foi derrubado no bojo de manifestações populares com presença massiva de jovens com o verde amarelo pintado no rosto. A hiper-inflação só tinha comparação com a ocorrida na República de Weimar, contexto para o surgimento e ascensão do nazismo. O ministro que montou a equipe responsável pelo plano que derrubou a inflação veio a se eleger presidente. Era de um partido com nome social-democrata mas executou uma política neoliberal de privatizações e perda de direitos. Mas conseguiu se reeleger, primeiro comprando deputados a peso de ouro para aprovar a reeleição. E depois por conta da popularidade gerada junto às classes populares por conta do “fim” da inflação. Seu sucessor era um conhecido militante da classe operária que liderava um partido de verdade, surgido da mobilização de base de trabalhadores, intelectuais, estudantes e de setores progressistas da Igreja Católica. Seu governo foi marcado por ampla redistribuição de renda por um lado. E pela adoção das mesmas práticas corruptas de compra de congressistas de outro, bem como da já tradicional presença de grandes empreiteiras financiando campanhas políticas, cujo primeiro incidente remonta ao primeiro presidente republicano Marechal Deodoro da Fonseca, que concedeu a construção do porto de Torres a um amigo. Mesmo assim, o ex-metalúrgico consegue se reeleger e fazer sua sucessora, uma assessora fiel e empedernida, mas pouco hábil politicamente. Para piorar, o cenário internacional era outro e a China, carro-chefe da compra de matérias-primas brasileiras, havia diminuído fortemente seu crescimento. Sem dinheiro, ficava mais difícil manter as políticas sociais e ao mesmo tempo agradar à classe média e aos políticos. A crise econômica se aprofunda: recessão e aumento da inflação. As denúncias de corrupção vêm à tona. Seus até então aliados políticos aproveitam a brecha e dão um “golpe” baseado em um aspecto técnico, mas com amplo apoio do Congresso. Assume um presidente fantasma de fala empolada que não perde tempo em iniciar uma política de desmonte de direitos da classe trabalhadora, privatizações e o mais descarado desrespeito às populações tradicionais. Motivos para sua condenação política e jurídica não faltam, mas há um pacto silencioso para mantê-lo. Resumo da ópera: mais de 500 anos depois, a terra brasilis continua a ser um dos países mais desiguais do mundo, embora seja também um dos mais ricos. FIM.