Revista Vírus
6 de outubro
__Coluna “Reflexões de um Burrico, por Marcos Alvito*____
O relógio assassino.
Aquilo sim é que era um presente de grego. Um deles chegou até a brincar:
– Poxa, assim vocês estão querendo matar o professor. ele anda de ônibus e se vagabundo botar os olhos nisso aí, já era.
O objeto cujo porte poderia levar a um trágico desfecho para a minha existência era apenas um relógio de mesa, bonito mas simples, colocado em um suporte de mármore. O problema estava na plaquinha de metal que afirmava ser aquilo um presente dos alunos do Curso de Segurança Pública da Universidade Federal Fluminense. Ele viera dentro de uma linda caixinha de papelão. O problema é que a caixinha vinha decorada com o famoso brasão da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro. Sim, eu havia ganho um relógio como homenagem de uma turma de oficiais da Polícia Militar, para os quais tive a alegria de dar aula durante oito anos.
Alegria? Sem dúvida. Pois em um curso chamado “A Polícia e os pobres”, o papo que tive com eles sempre foi reto. A Polícia Militar do Rio de Janeiro, que eles acreditam ser continuidade da Guarda Real de Polícia criada por D. João VI em 1809, há 206 anos,sempre teve como objetivo central a defesa da propriedade e da ordem pública, sendo entendida esta última como a repressão aos grupos mais pobres (economicamente), sobretudo aqueles que histórica e sociologicamente são considerados negros na sociedade brasileira. Os instrumentos utilizados para atingir seus objetivos sempre foram e continuam sendo a violência e o terror contra estes grupos em seus locais de habitação: cortiços e depois favelas e conjuntos habitacionais.
Mas eu começava devagarinho. Perguntava se algum aluno poderia, por gentileza, desenhar o brasão da PMERJ no quadro.O mesmo que decorava em profusão a embalagem daquela dádiva potencialmente tão funesta. Logo o oficial mais graduado e“mais antigo” ordenava a alguém que fosse “voluntário” para atarefa. Normalmente era alguém com grande habilidade, que traçava de maneira firme os contornos do símbolo maior da corporação. Depois eu perguntava se algum deles poderia me explicar o significado da imagem. Prontamente alguém me respondia, com certeza inabalável, que ao centro tínhamos as garruchas que simbolizavam o poder de polícia. Abaixo destas, o ano de fundação (1809) e acima a sigla da instituição (GRP) coroa imperial. Encimada pela Cruz de Cristo, é bom frisar este detalhe que poucos percebiam. Fechando, a sigla da própria PMERJ,numa clara afirmação de que a Polícia Militar do Rio de Janeiro representaria a continuidade da Guarda Real de Polícia.
( AQUI, a imagem do brasão da PMERJ –http://is.gd/brMhpI )
E ao lado, o que temos?, perguntava eu, como parte da minha estratégia retórica. Novamente a resposta era dada de maneira firme. Do lado esquerdo e direito, respectivamente, a cana-de-açúcar e o café, as duas maiores riquezas do Brasil imperial.Terminada a apresentação da versão oficial, eu passava a apresentar a minha interpretação. Mais ou menos assim:
“Em nome da fé cristã e do poder real (coroa), valendo-se da violência (garruchas), a Guarda Real de Polícia foi criada para defender os proprietários de terras, os senhores dos latifúndios onde se produzia açúcar e café.”
O silêncio que se seguia era pesado. E logo se transformava em murmúrios e em uma clara revolta quando eu explicava melhor a minha interpretação. Falava que as provas de que a polícia estava a serviço da Coroa e dos senhores de escravos eram várias. Para começar, a Guarda Real não tinha dotação orçamentária. Ela era paga pelos “serviços” que prestava. A saber: captura e castigo de escravos, sobretudo. Havia uma tabela de preços para esses serviços: 50 chibatadas tanto, 100 tanto e por aí vai. A G.R.P. , em um meio urbano com uma população escrava crescente e vista como extremamente ameaçadora era uma espécie feitor coletivo a substituir os feitores de cada fazenda existentes no meio rural.Ora, se os “clientes” eram os proprietários de escravos e se a principal tarefa da G.R.P. era prestar serviços terceirizados de violência e repressão para eles, é claro que ela não defendia cidadãos, apenas os “homens de Bem” contra a população de negros, africanos e brasileiros, escravizados ou libertos.
Da primeira vez que dei essa aula, um dos oficiais mais graduados, um coronel muito respeitado e sério, me interpelou duramente, embora de forma educada, questionando aquilo que eu afirmara acerca do papel da veneranda antepassada da PM do Rio de Janeiro. Na aula seguinte eu levei a documentação acercado que eu afirmara: uma estatística feita pela historiadora Leila Mezan Algranti em seu excelente livro O feitor ausente. Baseando-se na documentação existente no Arquivo Nacional, ela mostra que a Guarda Real fez mais de 8 mil prisões na sua primeira década de existência. Destas, 99,5% foram de negros,escravizados ou libertos, nacionais ou africanos, mas sempre,negros. Uma opção preferencial, digamos assim. O coronel em questão reagiu de forma extremamente honrada: não só aceitou a minha argumentação mas me convidou para ser seu orientador demonografia, o que eu aceitei.
Na verdade, quando eu recebi o convite para dar uma palestra no curso muito bem organizado pelo Prof. Roberto Kant de Lima cheguei a ficar receoso. É que anos antes eu havia escrito uma tese, depois transformada no livro As cores de Acari, hoje esgotado (mas disponível no site Academia.edu). Quando daquela aula inicial para os oficiais, só havia a tese, mas logo fui informado que uma professora havia passado para eles aquele capítulo em que as práticas da polícia militar são expostas e criticadas.Intitulado: “Azuis, verdes e vermelhos…”, azuis ali representava os policiais militares em confronto com os “traficantes” do Comando Vermelho e do Terceiro Comando (verdes). E eu tentei demonstrar que do ponto de vista das práticas, não havia grande diferença na atuação destes três grupos, embora se vissem como inimigos literalmente mortais. Era e é uma afirmativa duríssima, embora eu creia ser bastante fundamentada na etnografia que fiz.
Como eu sempre salientei que estava analisando a história da instituição Polícia Militar e como sempre os tratei com o mesmo respeito e carinho que sempre dispensei a meus alunos, por incrível que pareça, depois daquele coronel, ninguém mais contestava a minha interpretação do brasão. Partindo de fontes literárias, como trechos de O Cortiço de Aluísio de Azevedo, bem como de charges e de músicas, eu mostrava como a Polícia Militar do Rio de Janeiro sempre foi o que ainda é: uma força a serviço da propriedade e dos proprietários, contra a população economicamente mais pobre, particularmente a população negra.Por isso não fico surpreso, embora fique profundamente indignado, quando vejo as fotos dos rapazes negros sendo revistados do lado de fora dos ônibus que deveria levá-los a este local supostamente público e democrático chamado praia.
Meus próprios alunos, logo descobri, tinham consciência do seu papel. E eu só podia concordar com eles quando diziam que era a sociedade carioca que exigia este tipo de prática. Nunca me esqueço da entrevista gravada com um tenente-coronel. Ele medisse que morava em um prédio de classe média alta, onde havia também muitos juízes, promotores e advogados em geral. E que um juiz, no elevador, teria reclamado com ele: – Coronel, a polícia está matando muito pouco, vocês têm que matar mais…
Claro que na nossa relação em sala de aula às vezes havia aresta a aparar, não era simplesmente um mar de rosas. Não foge da memória o dia em que um aluno oficial pediu a palavra e me disse o seguinte, mais ou menos nessas palavras:- Professor, tudo isso que o senhor disse da atuação da polícia é verdade. Só que o senhor não entende nada do que é ser um policial militar. O cara entra na polícia e em cinco anos acontece uma dessas coisas com ele. Vira alcoólatra ou drogado. Ou torna-se crente, às vezes depois de virar viciado. Ou, o que acontece com muitos, passa aficar indiferente a tudo. Chega em casa e nem tem vontade de contar pra mulher como foi o seu dia. O senhor não entende nada,professor.
Não entendo mesmo. Mas sei que culpar somente a polícia, reagir à violência da instituição com ódio pelas pessoas que vestem a farda, embora compreensível, não é útil nem tampouco muito inteligente. Por isso eu tinha alegria em dar aquele curso para aqueles seres humanos que estavam diante de mim. É muito mais importante e eficaz tentar primeiro compreender o processo histórico que leva a Polícia Militar a ter essa “missão” do que simplesmente desprezar os policiais militares, ou melhor, as pessoas que estão exercendo este papel. Por isso também acoluna da semana que vem também será sobre este tema. Vou analisar a formação dos oficiais da polícia militar na Escola de Formação de Oficiais da PMERJ.
Até lá e um abraço para todxs, azuis, verdes, vermelhos ou qualquer que seja a sua cor de preferência.
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