Coluna Reflexões de um Burrico – Marcos Alvito
Revista Vírus – 22 de setembro de 2015
O capacete colorido
Para minha amada mestra, Maria Lucia Montes, que me ensinou a ver São Paulo e muito mais
Responda rápido, caro leitor ou leitora. Em que lugar do mundo você encontra: um poste embrulhado em crochê multicolorido; um shopping só de motos; metade de uma praça tomada por jovens homossexuais masculinos só de bobeira, zoando; africanos de diversas origens vendendo de tudo um pouco: camisas, gorros, máscaras de madeira e até mesmo parte da cabeleira para fazer tranças black; um restaurante onde se come carne de cobra a 200 metros de outro totalmente vegano; uma transexual operada dando consultas de tarô na praça; pastores e mais pastores pregando a salvação enquanto é tempo; ruas tomadas por nacionais de todas as regiões, índios guaranis, descendentes de africanos escravizados, de europeus de várias origens, judeus e árabes, coreanos, chineses e japoneses, para só ficar nos principais… Acertou em cheio quem respondeu São Paulo.
O tal poste com vestido de crochê. Centro de São Paulo. Foto de Marcos Alvito, setembro de 2015.
Afora uma noite na Pizzaria Moraes em uma viagem de família quando criança, visito São Paulo regularmente desde a década de 80 (há vantagens em ser um burro véio). Ia lá conhecer os primeiros centros culturais e ver um pouco da cena musical renovadora que incluía, entre outros, o saudoso Itamar Assumpção e o grupo Rumo, sem falar em Arrigo Barnabé. Depois fiz meu doutorado na USP na década de 90 em uma sala que era rica em temáticas acerca da cidade: bailes negros, redes formadas por migrantes nordestinos, uma escritora de livros espíritas psicografados, monges tibetanos, bolivianos em Sampa e por aí vai.Afora uma noite na Pizzaria Moraes em uma viagem de família quando criança, visito São Paulo regularmente desde a década de 80 (há vantagens em ser um burro véio). Ia lá conhecer os primeiros centros culturais e ver um pouco da cena musical renovadora que incluía, entre outros, o saudoso Itamar Assumpção e o grupo Rumo, sem falar em Arrigo Barnabé. Depois fiz meu doutorado na USP na década de 90 em uma sala que era rica em temáticas acerca da cidade: bailes negros, redes formadas por migrantes nordestinos, uma escritora de livros espíritas psicografados, monges tibetanos, bolivianos em Sampa e por aí vai.
Semana passada flanei dois dias pela cidade e novamente me surpreendi. Procurando a famosa Galeria do Rock na 24 de maio, no centro, acabei descobrindo a Galeria do Reggae. E lá, esbarrei surpreso com uma Pequena África vertical: ganenses, senegaleses e muitos nigerianos. Restaurantes de comida nigeriana com cardápio em inglês e na mesma língua um aviso: “vende-se carne de bode fresca”. Lojas vendendo cartões que permitem telefonar para qualquer lugar na África por preços módicos, outras vendendo e comprando cabelos para fazer tranças e penteados, cds de hiphop e camisas indianas, a turma do skate, aparelhos para DJs, uma maravilhosa Babel paulistana.
“Carne de bode fresca à venda”, cartaz em uma loja da “Galeria do Reggae”, rua 24 de maio, centro de São Paulo. Foto de Marcos Alvito, setembro de 2015.
Enquanto a imprensa noticia a saga dramática dos sírios que tentam refugiar-se na Europa, o Brasil torna-se, cada vez mais, um ponto de chegada de gente de várias nacionalidades. Aqui mesmo no Rio de Janeiro se percebe isso, basta andar de metrô e reparar em jovens e às vezes não tão jovens assim músicos de rua que cantam e tocam para os passageiros: outro dia ouvi Let it Be tocado por um duo de peruanos com direito a flauta andina. Muito bonito e sonoro. Mas é em São Paulo, talvez a nossa única cidade verdadeiramente cosmopolita, que este processo salta aos olhos. Um motorista de táxi claramente conservador me contou alarmado que já são 40 mil haitianos em São Paulo. Historicamente, foi essa mistura incrível, não planejada, caótica, que permitiu a São Paulo ser o que é. Mas existe, não esqueçamos, a questão racial, o preconceito e o racismo deslavado e raivoso. Quando chegavam italianos, judeus da Europa, espanhóis, portugueses e outros, isso era visto como a possibilidade do embranquecimento de um país que, para muitos intelectuais do início do século XX, era inviável por ser constituído por índios, negros e mestiços. Já começamos a assistir aos primeiros atos de xenofobia covarde e violenta.
Aguardo com muito interesse o desenrolar desse processo. São Paulo me ajudou a perceber uma mudança que vai transformar a face do nosso país, com resultados muito mais duradouros do que o oscilar das crises econômicas. O novo Brasil já caminha pelas ruas de Sampa. Fiquei dois dias procurando um símbolo perfeito para esse novo caldeirão cultural, étnico, linguístico e sobretudo humano. Fui encontrar de forma absolutamente inesperada. Vi um policial militar preparando-se para ir para casa em sua moto particular. Seu capacete, com cores extremamente vivas, misturadas de forma a ressaltar a força da variedade, acabou sendo “a mais perfeita tradução” para o que está acontecendo na cidade. São Paulo, de muitos amigos queridos, nascidos lá ou recém-chegados, da minha amada mestra Maria Lucia Montes, aqui eu presto modesta mas sincera homenagem a uma cidade viva, em eterna mutação. Salve!
O capacete colorido de um policial militar. São Paulo. Foto de Marcos Alvito, setembro de 2015.
Sobre o autor: O Burrico chama-se Marcos Alvito. É professor porque gosta sobretudo de aprender. Dá aula de História na UFF, mas faz pesquisa antropológica. Tem sete livros publicados, mas trocaria um ou dois por saber tocar cavaquinho. Bate um pouco de pandeiro e até se atreve a cantar uns sambas e uma determinada ária de Puccini. O cognome “Burrico” foi o presente de um colega de universidade, descontente com o fato do autor ter manifestado uma discordância de cunho político. Achou bacana, simpático até, pois o burro é um animal humilde e trabalhador. Essa coluna é semanal, publicada sempre às terças-feiras.