__Coluna “Reflexões de um Burrico, por Marcos Alvito*____
Aristóteles no Shopping
Nascido há 2399 anos, vamos dizer que o filósofo grego Aristóteles abandonasse a tranquilidade do bosque de Atenas onde lecionava caminhando junto com seus alunos e literalmente “baixasse” por aqui. Ajeitando bem a túnica e calçando suas melhores sandálias, ele passearia por um dos muitos shoppings da cidade em busca de um ser humano. O que seria uma tarefa bastante difícil,quiçá impossível. Pois na concepção aristotélica, há uma definição clara do que vem a ser o homem e os ávidos consumidores de bens e serviços do shopping não se encaixariam na mesma, de forma alguma.
A começar pela montoeira de gente pelos corredores e lojas. Viver em companhia de outros homens não era especificamente humano para Aristóteles,porque também os animais vivem em companhia uns dos outros. Formam bandos, rebanhos, boiadas, enxames.
Passeando pela praça de alimentação, por mais refinadas que fossem as comidas, o filósofo grego também não perceberia nada de especificamente humano, pois os animais também buscam o alimento necessário à sobrevivência. De nada adiantariam os cafés gourmet e os pratos caros. Do ponto de vista lógico, seriam tomados como um pedaço de carne para um cão.
Aristóteles notaria também vários casais, alguns deles com seus filhos. Aqui novamente não reconheceria nenhum sinal de humanidade, pois os bichos também acasalam e cuidam da sua prole, dos seus filhotes. O carinho, a amizade existente entre alguns desses casais poderia até emocionar o velho filósofo, mas seu veredito continuaria o mesmo: onde estão os seres humanos?Já que o amor é da esfera do privado, necessária mas insuficiente para que os seres humanos desenvolvam suas qualidades próprias, diferentes de outros animais.
Se tivesse curiosidade e conversasse com alguns desses casais, ouviria eles falarem de suas casas confortáveis e dos novos bens que acabavam de adquirir:vestimentas, calçados, objetos variados. Nada disso demoveria Aristóteles do seu juízo de que ali não parecia haver seres humanos. Pois os animais buscam abrigo e até fabricam-no por vezes, como os pássaros os seus ninhos.
Na verdade, por definição seria uma missão votada ao fracasso tentar procurar seres humanos em um shopping. Pois a humanidade só pode florescer, para Aristóteles, em um contexto muito específico chamado polis ou comunidade de cidadãos. É a esfera pública, em que seres humanos (à época dele somente homens) dialogam entre si e tentam persuadir uns aos outros para tomarem decisões, para agirem coletivamente. Uma pessoa, isolada, um indivíduo, não seria jamais, por definição, um ser humano. Não haveria uma essência automática e sim um contexto próprio em que nos transformamos em seres humanos.
Viver uma vida afastada de toda a esfera pública, somente para a satisfação dos desejos individuais, das necessidades, era visto como anti-humano, como animal e inferior por excelência. É apenas em contato com outros homens, que formam conosco uma comunidade com um mínimo de interesse comum é que podemos exercer nossa humanidade.
O ser humano se definiria pela ação voltada para outros seres humanos em comunidade. Seria definido pela palavra criativa, que estabelece um diálogo com os outros homens e com o mundo. A principal diferença entre seres humanos e animais não seria a tão decantada racionalidade dos primeiros e sim a capacidade de criar, o talento artístico, crítico, que foge à esfera da satisfação das necessidades.
Oprimido por um ambiente animal, Aristóteles tomaria a saída mais próxima e desembocaria em uma rua típica do Rio de Janeiro. Suja, esburacada, com anúncios de mercadorias em outdoors, no ponto de ônibus, nos letreiros das lojas. Novamente o império das coisas, pensaria o filósofo. Desesperado, se enfiaria em um buraco no chão cheio de letreiros e tomaria um veículo que não parecia ter rodas mas que se movia muito rápido. Olharia em torno e novamente veria cada um cuidando dos seus assuntos particulares.
Mas de repente surgiria uma dupla composta por um rapaz e uma moça. Ela tinha um pandeiro, sim, Aristóteles seria capaz de reconhecer o instrumento. E ele um instrumento de cordas esquisito, meio pequeno nas mãos enormes do moço. Bela voz eles têm, pensa o velho filósofo e que mãos habilidosas. Uma senhora a seu lado gentilmente lhe explicaria que aquelas canções eram chamadas de samba. O velho filósofo ficaria sobretudo encantado com um que dizia:
Meu sapato já furou minha roupa já rasgou já não tenho onde morar,onde morar,Meu dinheiro acabou,já não sei pra onde vou,como é que eu vou ficar,que eu vou ficar, Já não sei nem mais sorrir,meu amor me abandonou,sem motivo e sem razão E pra piorar minha situação, eu fiz promessa pra São Luiz Durão,meu sapato já furou…
– Que magnífico desprendimento em relação ao mundo da matéria, aos bens econfortos, o ritmo alegre é uma resposta às dificuldades, diria o grego
E ficaria encantado ao ouvir a dupla cantar a segunda parte do samba de Mauro Duarte:
Quem me vê assim pode até pensar que eu cheguei ao fim Mas quando a minha vida melhorar,eu vou zombar
de quem sorriu de mim,
meu sapato já furou…
Finalmente o velho filósofo esboçaria um sorriso. Embora esta terra do futuro fosse muito, muito estranha, ainda restavam uns poucos seres humanos.
_____*Sobre o autor: O Burrico chama-se Marcos Alvito. É professor porque gosta sobretudo de aprender. Dá aula de História na UFF, mas faz pesquisa antropológica.
Tem sete livros publicados, mas trocaria um ou dois por saber tocar cavaquinho.Bate um pouco de pandeiro e até se atreve a cantar uns sambas e uma determinada ária de Puccini.