Norbert Elias: a contribuição e os limites de Freud
p.41: “Devemos a Freud um grande avanço na compreensão dos processos coletivos ao longo dos quais ganham forma as instâncias de autocontrole do homem. O próprio Freud, entretanto, conceituou predominantemente sua constatações de um modo que levou a crer que todo ser humano é uma unidade fechada em si mesma, um homo clausus. Ele reconheceu a capacidade especificamente humana de aprender a controlar e, até certo ponto, moldar os impulsos libidinais maleáveis nas experiências vividas dentro das normas grupais. Mas conceituou as funções de autocontrole que viu crescerem com a ajuda destas experiências como se elas fossem órgãos do corpo, como os rins e o coração. Em suma, seguiu uma tradição que ainda é tão difundida dentro da classe médica quanto no público leigo em geral. Ele representou conceitualmente as funções de controle e orientação, no nível da personalidade do organismo humano, formadas através da aprendizagem, como se elas fossem órgãos de um de seus níveis inferiores, pouco afetados pela aprendizagem. Descobriu que os processos grupais de uma relação pai-mãe-filho têm uma influência determinante na moldagem das pulsões elementares e na formação das funções de autocontrole da pessoa na primeira infância. Contudo, uma vez formadas, elas lhe pareceram funcionar sozinhas, independentemente dos outros processos grupais em que toda a pessoa está envolvida, desde a infância até a juventude. Como resultado, ele formulou a concepção das funções de autocontrole dos seres humanos – o eu e o super-eu ou ideal do eu [ego-ideal], como as denominou – de tal maneira que elas têm a característica de funcionar no que parece ser uma autonomia absoluta dentro do indivíduo. Mas as camadas da estrutura de personalidade que permanecem mais direta e estreitamente ligadas aos processos grupais de que as pessoas participam, sobretudo a imagem do nós e do ideal de nós [we-ideal] ficaram fora do seu horizonte. Ele não as conceituou e é provável que as tenha considerado parte do que chamava realidade, em contraposição às fantasias afetivas e aos sonhos, os quais viu, provavelmente, como seu próprio campo de interesse. Por mais que ele tenha contribuído para a compreensão dos laços que unem as pessoas, seu conceito de homem continuou a ser, basicamente, o do indivíduo isolado. Em seu campo de visão, as pessoas pareciam estruturadas e as sociedades formadas por pessoas interdependentes pareciam um pano de fundo, uma ‘realidade’ não estruturada, cuja dinâmica, aparentemente, não exercia nenhuma influência no ser humano individual.”
Fonte: ELIAS,N. & SCOTSON,John L.
(2000) Os estabelecidos e os outsiders: sociologia das relações de poder a partir de uma pequena comunidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.