/O DRUMMOND NOSSO DE CADA DIA – Canção do berço

O DRUMMOND NOSSO DE CADA DIA – Canção do berço

O DRUMMOND NOSSO DE CADA DIA

CANÇÃO DO BERÇO

O amor não tem importância.
No tempo de você, criança,
uma simples gota de óleo
povoará o mundo inteiro por inoculação,
e o espasmo
(longo demais para ser feliz)
não mais dissolverá as nossas carnes.

Mas também a carne não tem importância.
E doer, gozar, o próprio cântico afinal é indiferente.
Quinhentos mil chineses mortos, trezentos corpos de [namorados sobre a via férrea
e o trem que passa, como um discurso, irreparável:
tudo acontece, menina,
e nada fica nos teus olhos.

Também a vida é sem importância.
Os homens não me repetem
nem me prolongo até eles.
A vida é tênue, tênue.

O grito mais alto ainda é suspiro,
os oceanos calaram-se há muito.
Em tua boca, menina,
ficou o gosto de leite?
ficará o gosto de álcool?

Os beijos não são importantes.
No teu tempo nem haverá beijos.
Os lábios serão metálicos,
civil, e mais nada, será o amor
dos indivíduos perdidos na massa
e só uma estrela
guardará o reflexo
do mundo esvaído
(aliás sem importância).”

Carlos Drummond de Andrade. Nova reunião: 23 livros de poesia – Volume 1. Rio de Janeiro: Bestbolso, 2010. 3.ed.