/O DRUMMOND NOSSO DE CADA DIA – Retrato de família

O DRUMMOND NOSSO DE CADA DIA – Retrato de família

RETRATO DE FAMÍLIA

Este retrato de família

está um tanto empoeirado.

Já não se vê no rosto do pai

quanto dinheiro ele ganhou.

 

Nas mãos dos tios não se percebem

as viagens que ambos fizeram.

A avó ficou lisa, amarela,

sem memórias da monarquia.

 

Os meninos, como estão mudados.

O rosto de Pedro é tranquilo,

usou os melhores sonhos.

E João não é mais mentiroso.

 

O jardim tornou-se fantástico.

As flores são placas cinzentas.

E a areia, sob pés extintos,

é um oceano de névoa.

 

No semicírculo das cadeiras

nota-se certo movimento.

As crianças trocam de lugar,

mas sem barulho: é um retrato.

 

Vinte anos é um grande tempo.

Modela qualquer imagem.

Se uma figura vai murchando,

outra, sorrindo, se propõe.

 

Esses estranhos assentados,

meus parentes? Não acredito.

São visitas se divertindo

numa sala que se abre pouco.

 

Ficaram traços da família

perdidos no jeito dos corpos.

Bastante para sugerir

que um corpo é cheio de surpresas.

 

A moldura desse retrato

em vão prende suas personagens.

Estão ali voluntariamente,

saberiam – se preciso – voar.

 

Poderiam sutilizar-se

no claro-escuro do salão,

ir morar no fundo dos móveis

ou no bolso de velhos coletes.

 

A casa tem muitas gavetas

e papéis, escadas compridas.

Quem sabe a malícia das coisas,

quando a matéria se aborrece.

 

O retrato não me responde

ele me fita e me contempla

nos meus olhos empoeirados.

E no cristal se multiplicam

 

os parentes mortos e vivos.

Já não distingo os que se foram

dos que restaram. Percebo apenas

a estranha ideia de família

 

viajando através da carne.