/O DRUMMOND NOSSO DE CADA DIA – UMA HORA E MAIS OUTRA

O DRUMMOND NOSSO DE CADA DIA – UMA HORA E MAIS OUTRA

UMA HORA E MAIS OUTRA

Há uma hora triste

que tu não conheces.

Não é a da tarde

quando se diria

baixar meio grama

na dura balança;

não é a da noite

em que já sem luz

a cabeça cobres

com frio lençol

antecipando outro

mais gelado pano;

e também não é a

do nascer do sol

enquanto enfastiado

assistes ao dia

perseverar no câncer,

no pó, no costume,

no mal dividido

trabalho de muitos;

não a da comida

hora mais grotesca

em que dente de ouro

mastiga pedaços

de besta caçada;

nem a da conversa

com indiferentes

ou com burros de óculos,

gelatina humana,

vontades corruptas,

palavras sem fogo,

lixo tão burguês,

lesmas de blackout

fugindo à verdade

como de um incêndio,

não a do cinema

hora vagabunda

onde se compensa,

rosa em technicólor,

a falta de amor,

a falta de amor,

A FALTA DE AMOR;

nem essa hora flácida

após o desgaste

do corpo entrançado

em outro, tristeza

de ser exaurido

e peito deserto,

nem a pobre hora

da evacuação:

um pouco de ti

desce pelos canos,

oh! adulterado,

assim decomposto,

tanto te repugna,

recusas olhá-lo:

é o pior de ti?

 

Torna-se a matéria

nobre ou vil conforme

se retém ou passa?

Pois hora mais triste

ainda se afigura;

ei-la, a hora pequena

que desprevenido

te colhe sozinho

na rua ou no catre

em qualquer república;

já não te revoltas

e nem te lamentas,

tampouco procuras

solução benigna

de cristo ou arsênico,

sem nenhum apoio

no chão ou no espaço,

roídos os livros,

cortadas as pontes,

furados os olhos,

a língua enrolada,

os dedos sem tato,

a mente sem ordem,

sem qualquer motivo

de qualquer ação,

tu vives: apenas,

sem saber por quê,

como, para quê,

tu vives: cadáver,

malogro, tu vives,

rotina, tu vives,

tu vives, mas triste

duma tal tristeza

tão sem água ou carme,

tão ausente, vago,

que pegar quisera

na mão e dizer-te:

Amigo, não sabes

que existe amanhã?

Então um sorriso

nascera no fundo

de tua miséria

e te destinara

a melhor sentido.

Exato, amanhã

será outro dia.

Para ele viajas.

Vamos para ele.

Venceste o desgosto,

calcaste o indivíduo,

já teu passo avança

em terra diversa.

Teu passo: outros passos

ao lado do teu.

O pisar de botas,

outros nem calçados,

mas todos pisando,

pés no barro, pés

n’água, na folhagem,

pés que marcham muitos,

alguns se desviam,

mas tudo é caminho.

Tantos: grossos, brancos,

negros, rubros pés,

tortos ou lanhados,

fracos, retumbantes,

gravam no chão mole

marcas para sempre:

pois a hora mais bela

surge da mais triste.