Raul dá a volta por cima: as cotas vistas de dentro da sala de aula
Você é considerado branco ou negro? Se “for” branco, faça a seguinte experiência: coloque uma folha de papel em branco ao lado do seu braço e perceba a diferença. Não há ninguém “branco”. Branco é uma classificação histórico-sociológica. Ou seja: é branco quem é considerado como tal por uma sociedade específica em um determinado momento da sua história, fruto de um processo secular de lutas e transformações. Da mesma forma, negro também é uma classificação histórico-sociológica. Só existe a raça humana e isto já é dado irrefutável há muito tempo do ponto de vista científico. Mas as “raças”, enquanto conceitos e realidades histórico-sociológicas, continuam a existir. Há, portanto, que se fazer algo a respeito quando em uma sociedade como a brasileira há mais de 500 anos há uma “cota para brancos” e que inclui não somente as vagas na universidade mas também as melhores profissões (o que está obviamente ligado), as melhores remunerações, uma expectativa de vida mais alta, reflexo de condições de existência (material) em média bem melhores.
A deformação da nossa perspectiva pelo individualismo reinante, não permite ver que, na verdade, as cotas não beneficiam somente os indivíduos pertencentes à população que tem direito e sim ao conjunto da sociedade brasileira. Gostaria de argumentar neste sentido a partir da minha experiência concreta como professor do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense. Tenho visto de perto, com muita alegria e otimismo, o resultado da progressiva implantação da Lei de Cotas na universidade e seu impacto em sala de aula. Vou dar um exemplo retirado de um curso recém-terminado.
O curso se chamava Debret e a formação da cultura afro-carioca e foi oferecido aos alunos de História como um curso temático, isto é, cujo tema é escolhido pelo professor. O que me interessava era mostrar que a obra de Jean-Baptiste Debret podia servir de um testemunho de como os africanos aqui chegados na condição de escravos, reconstruíam suas vidas e o sentido das mesmas. Valendo-se de vários recursos, enfrentavam com coragem e inteligência a ameaça de três mortes: a morte simbólica (vistos como mercadoria), a morte social (a condição jurídica do escravo, o estigma, o preconceito) e a morte física (sempre rondando diante das condições materiais de existência). Neste processo de renascimento das cinzas, um tema frequente aliás no mundo do samba, estes seres humanos que aqui desembarcavam, valiam-se dos recursos das suas culturas, ressignificada em um contexto totalmente diferente e em contato com outras culturas. Através do trabalho, melhoravam suas condições de existência, conquistavam algum respeito ao demonstrar sua importância para a sociedade e, no caso dos muitos que trabalhavam nas ruas, como “negros (ou negras) de ganho”, desfrutavam de algumas horas de relativa liberdade que lhes permitiam criar e estreitar laços de amizade e afeto com outros na sua condição. Uma religião começa a se formar a partir do encontro de diversas religiões africanas, algumas delas com grande capacidade para incorporar novas divindades e a religião católica oficial, processo que viria mais tarde a desembocar na Umbanda. Cantando e tocando instrumentos africanos e europeus, reuniam-se, trocavam experiências, elaboravam críticas a seus senhores e ao sistema escravista. Reapropriando-se dos seus corpos como instrumento de prazer para eles e não de suporte para a violência e o abuso, dançavam nas ruas e praças.
Enfim, das diversas soluções criativas inventadas por estes seres humanos obrigados a enfrentar uma situação limite, surge uma nova cultura, chamada de afro-carioca pela historiadora norte-americana Mary Karasch em um livro maravilhoso: A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850).
A obra de Debret, que viveu na Corte entre 1816 e 1831, exatamente no período de maior presença de africanos no Rio de Janeiro, é uma fonte histórica inestimável para pensarmos a formação desta cultura afro-carioca. O artista francês opta por representar negros e negras em seu trabalho, de forma digna, construindo a riqueza da nova nação. Ele escolhe claramente deixar de fora do seu livro Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil, publicado depois do seu retorno à França, esboços e aquarelas que não contribuíssem para uma visão positiva dos negros. Nesta obra eles são representados como trabalhadores infatigáveis, não só carregando mercadorias, mas também sendo capazes de trabalhos artesanais refinados e artísticos e até mesmo de coletar espécies vegetais e animais para coleções científicas.
O trabalho final da disciplina solicitava uma análise da obra de Debret em termos da representação do negro e de como ele dialogava com as questões da época: se deveria ou não abolir-se a escravidão, se os negros poderiam superar a selvageria e alcançar níveis espirituais mais elevados. Questões de uma época racista, sem dúvida, como o próprio Debret.
Agora é que vem o mais interessante. A turma tinha 24 alunos e alunas. Quatro dentre eles, um rapaz e três moças, pedem ao professor para escrever um trabalho diferente, de cunho ficcional, para responder à pergunta. A coincidência reveladora é que todos os quatro se vêem e são vistos como negros-negras. Creio que isto foi decisivo para que tenham escolhido uma forma narrativa mais aberta, mais íntima, mais emocional, mais aberta à imaginação histórica. Eles se valeram da sensibilidade duramente conquistada no dia a dia de uma sociedade racista para tentar pensar a situação dos escravos do Rio de Janeiro na primeira metade do século XIX. O resultado foi excepcional.
Marcus Vinicius de Oliveira, optou por criar a história de Marianne, uma cadelinha que não somente seria uma companheira inseparável do pintor mas também uma astuta crítica da sua obra, na qual aponta uma tentativa de disfarçar minimamente diante de seus leitores brancos o papel de destaque que atribuía aos negros. Karla Quintanilha inventa um diário de Debret com dois momentos bem marcados: o da chegada, quando achava tudo selvagem e bárbaro, sobretudo os negros e o de momentos antes do seu retorno, quando já estava apaixonado por uma negra vendedora de doces e passara a respeitar os negros, embora ainda os achasse inferiores. Caroline Sant’Anna Lourinho, por sua vez, conta a história dos escravos no Rio de Janeiro pelos olhos de um menino, chocado com a realidade sem sentido da escravidão:
“Lembro-me como se fosse ontem daquela tarde de domingo em que minha mãe estava a vender seus quitutes nas ruas da cidade se aproveitando da movimentação das pessoas felizes que saíam da missa e retornavam ao lar. Pessoas felizes era como eu os chamava. Com a pele muito mais clara que eu e mamãe, com roupas demais, as solas dos pés jamais tocando o chão e um sentimento de liberdade que eu, embora tão novo, sentia que não me pertencia.”
Para fechar, o trabalho que praticamente dá nome a este artigo, “As desventuras do Raul descobrindo Debret”, de Sulyane Marques. É um diário em primeira pessoa de um adolescente de 14 anos chamado Raul e que sofre com a discriminação racial na sua escola. O relato começa com ele se queixando da apresentação, por parte da professora de História, de três imagens de Debret: uma retratando os escravos apanhando (Feitores castigando negros), outra servindo o jantar a um casal branco (O jantar no Brasil) e por fim a gravura de Um funcionário a passeio com sua família, em que as “posses” deste senhor são obrigadas a desfilar. Os colegas de Raul aproveitam a ocasião para debochar dele e de seus antepassados, rindo e apontando para ele. Revoltado, Raul procura a professora de Arte e esta lhe mostra um outro Debret, inúmeras outras imagens que levam Raul a perceber que “o negro é que estava construindo a nação brasileira”. Apesar das limitações de Debret enquanto um homem europeu da primeira metade do século XIX, Raul conclui:
“Percebi que o Rio de Janeiro que Debret mostrou era uma cidade e uma sociedade marcada pela violência extrema e partia justamente do branco civilizado, pra mim ele nada tinha de civilizado. Aprendi que por detrás da imagem do negro fazendo determinados trabalhos, Debret mostrava que os negros tinham total capacidade de fazer parte dessa sociedade”
No último dia do curso, Sulyane revelou diante de todos nós que o Raul, como muitas personagens de ficção, tinha muito da sua autora, no caso, dela e de sua experiência. Não sei se Marcus, Karla, Caroline e Sulyane ingressaram na universidade se beneficiando ou não da Lei de Cotas. Isso não é verdadeiramente relevante. O que importa é que a presença de alunos histórico-sociologicamente negros na universidade representa uma possibilidade de aprofundarmos a compreensão dos processos históricos vivenciados pela população brasileira ao longo dos séculos e que nos afetam até hoje. Compreendendo o nosso passado, entenderemos o presente e poderemos construir um futuro melhor. A volta por cima que Raul deu diz respeito a todos nós brasileiros, independentemente da cor da nossa pele.