O papel civilizatório do samba no R. Janeiro, um fato social total como o kula
“[a biografia de Geraldo Pereira, seus empregos e atividades] os encontros, a convivência e as trocas entre brancos e negros, morro e cidade, e até mesmo entre sambistas e policiais, não permanecem ocultos por quaisquer impedimentos ideológicos. Outros livros recentes sobre a história musical do Rio de Janeiro reconstituem os encontros entre os músicos e literatos eruditos com os poetas e compositores populares, na mistura de gêneros e estilos musicais que sempre marcou a produção cultural do Rio de Janeiro. Essa história, como tantas outras, pode ajudar a esclarecer o enigma da interiorização de um etos civilizado numa população tão afastada das instituições enquanto tais e tão desrespeitada no sistema de justiça vigente no país. Nela, nem os favores do policial * impediram o espírito crítico do sambista de se manifestar, mesmo quando era uma portaria de polícia que estava em questão **. E apesar de criar o Bloco das Sete ***, Geraldo Pereira não perdeu o emprego arrumado pelo policial amigo dos sambistas. Os princípios ambíguos porém eficazes de reciprocidade preencheram os vazios institucionais e criaram simbolicamente as outras armas, que não matam, com as quais foi possível viver os conflitos sociais de modo regrado.”
* O Major Couto, policial amigo de vários sambistas e que conseguiu um emprego de motorista do caminhão da Companhia de Limpeza Urbana para Geraldo Pereira quando o sambista tinha 18 anos (em 1936 aproximadamente); parece que, por conta do “pistolão”, G.Pereira gozava de regalias no emprego.
** Proibindo a venda de cachaça após as 19 horas.
*** No Santo Antônio (Mangueira), G.Pereira juntamente com outros sambistas cria um bloco para satirizar a ordem policial: a alegoria constava de “um boneco preto sambando em cima de um barril de aguardente”
(…)
“A última história [de G.Pereira], ocorrida já sob os efeitos do período Vargas, repete-se na biografia de vários sambistas, todos identificados com a figura do malandro. Ismael Silva, Nelson Sargento, Geraldo Pereira, Heitor dos Prazeres e tantos outros conseguiram empregos por influência de políticos e membros da elite de quem se tornaram amigos. Vários deles tiveram também relações pessoais de muita proximidade com comerciantes portugueses que participavam das escolas de samba. Jornalistas, desde o início, acompanharam ativamente a montagem do maior sistema de criação cultural popular e urbano do país. Foi Roberto Marinho, então diretor do jornal O Globo, quem patrocinou o desfile de escolas de samba na cidade”
(…)
-
1929 : Primeiro desfile da Deixa Falar (do Estácio), já com comissão de frente com trombetas e cavalos cedidos pela Polícia Militar
-
1932 : Ajuda financeira da Prefeitura do Distrito Federal e patrocínio do jornal O Globo, que fez o regulamento, proibindo instrumentos de sopro e obrigando à existência de ala das baianas
-
1935 : O desfile já consta do programa oficial do Carnaval Carioca elaborado pela Prefeitura
(…)
“A vitória do samba era, portanto, a vitória do projeto de nacionalização e modernização da sociedade brasileira.”
(…)
“Esses comportamentos [do malandro, expressos na polêmica entre Heitor dos Prazeres e Sinhô acerca da autoria de determinados sambas] não expressavam apenas uma relação negativa com o trabalho industrial. O malandro boêmio criava, aprendia música, tocava, promovia extensos circuitos de reciprocidade e possuía preocupações morais. Ele amava o seu trabalho prazeroso porque não tinha rotina, nem obrigação, nem horário e porque era o centro de um vasto circuito de reciprocidade (músicas feitas juntas, trocadas, exibições em outras favelas e bairros da cidade reunindo os competidores e rivais) no qual se constituía a sociabilidade sociável [1] dos mais longínquos e altos recantos da cidade.
Disso tudo resultou um outro processo que, a partir do Rio de Janeiro, se espalhou pelo país: a instituição de torneios, concursos e desfiles carnavalescos envolvendo bairros e segmentos populares rivais. Desde o início deste século, os conflitos ou competições entre os bairros, vizinhanças pobres ou grupos de diversas afiliações eram representados e vivenciados em locais públicos que reuniam pessoas vindas de todas as partes da cidade, de todos os gêneros, de todas as idades, criando associações, ligações, encenações metafóricas e estéticas das suas possíveis desavenças [2] , seguindo regras cada vez mais elaboradas. O samba reunia também pessoas de várias gerações, sendo uma atividade de lazer para toda a família, o que quer dizer que, nos ensaios, nas diversas atividades de preparação do desfile, no barracão onde juntos trabalhavam, os valores e regras da localidade e da classe dos trabalhadores urbanos conseguiam ser transmitidos de uma geração para outra , mesmo que não completamente. O samba, como o kula dos trobriandeses, analisado por Marcel Mauss, é um fato social total, ou seja, um daqueles raros fenômenos que têm a propriedade de ligar as pessoas em extensos anéis de reciprocidade, mobilizando suas disposições internas e concretizando ações simultaneamente em diversos planos: econômico, religioso, político, psicológico. Assim, a cidade era representada como o lugar do espetáculo e como a própria platéia da rivalidade e do encontro dos diferentes segmentos e partes em que esteve sempre dividida. Nessa cidade-espetáculo e cidade-platéia o fim da obscuridade era perseguido por pessoas e grupos na criação poética, na fantasia gerada num imaginário que fazia da palavra, da dança e da música seus principais instrumentos. Era isso que permitia ao sambista cantar em seus versos:
Qualquer criança
Bate um pandeiro
E toca um cavaquinho
Acompanhando o canto de um passarinho
Sem errar o compasso
(Tio Hélio da Serrinha)
Fonte: ZALUAR,Alba. “Para não dizer que não falei de samba: os enigmas da violência no Brasil” In: SCHWARCZ,Lilia Moritz (Org.). História da Vida Privada no Brasil, volume 4: Contrastes da intimidade contemporânea. São Paulo:Companhia das Letras,1998. pp.245-318; os trechos citados estão entre as pp. 278 e 287.
[1] P.ex.: Sala de recepção, de Cartola (1940); Notícia, de Nélson Cavaquinho (+ Alcides Caminha e Nourival Bahia)
[2] P.ex.: a série de sambas louvando as escolas pioneiras (CD – O Samba é a minha nobreza, CD1- faixa 1): Primeira escola (Pereira Matos/Joel de Almeida) / Quem vem lá ? (Bide/Marçal)/ Queremos ver (Antônio Caetano/Monarco)/ Mangueira, não (Herivelto Martins/Grande Otelo)/ Silenciar a Mangueira (Cartola) ou de portelenses como Monarco, saudando o Estácio (Estácio de Sá, Glória do Samba), a Mangueira (Mangueira e suas glórias) ou os compositores de samba indistintamente (Glórias do samba) e as escolas em geral Escolas em desfile ; P. da Viola saudando a Mangueira: “Vista assim do alto, mais parece um céu no chão…”; sem falar em Homenagem a Geraldo Pereira (Monarco)
Primeira escola (Pereira Matos/Joel de Almeida)
Quem vem lá ? (Bide/Marçal)
Queremos ver (Antônio Caetano/Monarco)
Mangueira, não (Herivelto Martins/Grande Otelo)
Silenciar a Mangueira (Cartola)
ou de portelenses como Monarco, saudando o Estácio (Estácio de Sá, Glória do Samba), a Mangueira (Mangueira e suas glórias) ou os compositores de samba indistintamente (Glórias do samba) e as escolas em geral Escolas em desfile
e Paulinho da Viola saudando a Mangueira: “Vista assim do alto, mais parece um céu no chão…”
Obs: Em termos do trânsito de sambistas entre as escolas e da necessidade de agir diplomaticamente, veja-se o samba de Zé Kéti, Peço licença
Obs 2: Às vezes a escola rival é saudada, mas com alguma ironia, resguardando-se a primazia da sua escola: “Mangueira é celeiro, de bambas como eu, Portela também teve, o Paulo que morreu…” ou Portela, passado de glória “a Mangueira de Cartola, velhos tempos de apogeu, o Estácio de Ismael, dizendo que o samba era seu…”