/Trabalho de campo: observações práticas e teóricas de um antropólogo que estudou uma aldeia do Himalaia

Trabalho de campo: observações práticas e teóricas de um antropólogo que estudou uma aldeia do Himalaia

123 A fachada ou a conspiração de silêncio em torno de alguns aspectos práticos da etnografia:

“Os etnógrafos raramente explicitaram os métodos a partir dos quais a informação relatada em seus estudos descritivos e analíticos foi colhida. Menos frequentemente ainda, fizeram uma exposição sistemática daqueles aspectos do trabalho de campo que extravasam uma definição convencional de método, mas que são cruciais para a pesquisa e seus resultados.

(…)

Devido às regras do jogo, que impediram os outros de lhe comunicarem suas experiências, é possível que considere suas próprias dificuldades de ânimo e de relacionamento, seus próprios compromissos entre o ideal e o necessário como sendo singulares e, talvez, como sinais de fraqueza ou de incompetência.”

124 Em que consiste o livro:

“Esta monografia* não é uma apresentação de métodos de pesquisa, ou de técnicas de campo, no sentido tradicional. Trata-se da descrição de alguns aspectos de minha pesquisa de campo, analisados segundo um ponto de vista particular. Como tal, é uma tentativa de retratar alguns aspectos da experiência humana, que constitui o trabalho de campo, e algumas implicações, do fato de ser essa uma experiência humana, para a etnografia, como tarefa científica. (…) Como em todos os trabalhos de campo, as escolhas nem sempre foram minhas e os resultados frequentemente eram inesperados.”

* O trabalho de campo de Berreman foi feito em 1957-8

125 Sirkanda e os estranhos:

“Os estranhos nessa área são poucos e facilmente reconhecíveis pelo vestuário e bela fala. Pessoas identificadas como estranhas são ignoradas, ou desencorajadas a permanecerem muito tempo na vizi-

126 nhança. Para evitar ser assim recebido, a pessoa deverá ser capaz de identificar-se como membro de um grupo familiar, através de laços de parentesco, de casta (jati), e/ou de afiliação na comunidade. Dado que as duas primeiras são características adscritas, a única esperança que um estranho tem de ser aceito é estabelecer residência e, pela interação social, adquirir o status de residente na comunidade; um processo lento, na melhor das hipóteses.”

127 As razões da reticência proverbial dos aldeões de Sirkanda frente aos vindos de fora:

“Os contatos com estranhos se limitaram, em grande parte, a contatos com policiais e coletores de impostos – duas das mais baixas ocupações na taxonomia Pahari. Esses funcionários são desprezados não só porque, no desempenho de suas funções, trazem complicações para os aldeões, como também porque praticam extorsão, sob ameaça de causarem maiores embaraços e, frequentemente parecem prevalecer-se de suas posições oficiais para liberarem sua agressividade sobre esses indivíduos vulneráveis. Desde a independência da Índia, o âmbito da responsabilidade governamental ampliou-se e passou a abarcar a severa supervisão de imensas áreas florestais nacionais, o racionamento de certos bens, o estabelecimento de diversos programas de desenvolvimento etc. Os motivos para interferir na vida da aldeia se multiplicaram, assim como proliferou a variedade dos agentes oficiais. Qualquer estranho pode, portanto, ser um agente do governo. Como tal, é potencialmente provocador e até mesmo perigoso.

Os temores dos aldeões a esse respeito não são infundados. Afora a exploração injusta, que se diz ser praticada por esses agentes no exercício de suas funções, há inúmeras atividades ilegais, ou semi-legais, realizadas pelos aldeões, que poderiam proporcionar um motivo para penalidades, ou que facilmente constituem uma base para a extorsão. Em Sirkanda, houve apropriação ilegal de terras e produtos florestais pelos aldeões; destilação e venda ilícita de bebidas alcóolicas, venda ilegal de mulheres, não-licenciamento de armas, venda de leite adulterado para comerciantes de fora, frequentes casamentos de crianças abaixo da idade legal, deserção do exército ou fuga de homens da prisão, compra ilegal de propriedade de muçulmanos refugiados na época da partilha. Quaisquer dessas infrações, ou infrações semelhantes, reais ou imaginárias, podem ser objeto da curiosidade de um estranho, e portanto, constituem motivos para desencorajar a sua presença na aldeia.

Os habitantes dos vales julgam os Paharis ritualmente, espiritualmente e moralmente inferiores. Suspeitam que praticam feitiçaria e magia negra. Ademais, são considerados matutos ingênuos – o estereótipo do montanhês atrasado de outras culturas é compartilhado pelos indianos. Os Paharis tentam evitar a interação com os que adotam esses estereótipos. É possível que brâmanes estranhos tentem desacreditar seus iguais Paharis, procurando provas de sua falta de ortodoxia; que comerciantes de fora procurem locupletar-se com seu dinheiro duramente ganho, ou com sua produção, através

128 de transações comerciais astutas; que assaltantes tentem emboscar ou raptar as mulheres da aldeia; que ladrões venham para roubar seus bens materiais; que advogados ou seus acólitos procurem provas para processos legais sensacionalistas, dos quais um pobre Pahari não poderia esperar defender-se no tribunal. Cristãos poderão destruir suas crenças e práticas religiosas. Portanto, suspeita-se que os estranhos tenham motivos ocultos, mesmo que não estejam ligados ao governo.

A única maneira de garantir que esses perigos não são inerentes a uma pessoa é sabem quem ela é; e, para sabê-lo, ela deve ajustar-se em algum lugar no sistema social conhecido. Só então estará ela sujeita aos controles locais efetivos, de modo que, se houver transgressões, ou traição da confiança, será forçada a prestar contas. A pessoa que escapa ao controle não merece confiança e é melhor que a estimulem a seguir o seu caminho.

Esta é, portanto, uma sociedade relativamente fechada. A interação com estranhos é mantida ao mínimo; a informação que se lhes proporciona é escassa e estereotipada. O acesso a uma sociedade como essa é difícil para alguém de fora.”

Obs: Várias dessas observações guardam uma semelhança incrível com o caso de Acari: o estigma que pesa sobre os Paharis, as atividades ilegais que desenvolvem, as possibilidades de serem prejudicados pelos de fora, tudo isto explicando uma reticência extrema frente a estranhos.

134 “Ele mora aqui” era a resposta sucinta dos camponeses àqueles que perguntavam sobre o antropólogo depois de “aceito”;

138 Consequências para a pesquisa da mudança de assistente:

Quando seu assistente Sharma, jovem, de casta alta, e com experiência em trabalhos antropológicos adoeceu, ele o substituiu por Mohammed, muçulmano, de meia idade e inexperiente em trabalhos antropológicos e percebeu o que isto acarretava:

  1. por ser mais inexperiente, Mohammed aceitava logo sugestões e auxiliava no contato direto do pesquisador com os camponeses, ao invés de “demonstrar-se pesquisador eficiente e intérprete insubstituível”;

  2. pela idade, era tratado “com certo respeito”;

  3. estabelecia um bom relacionamento com as castas baixas, mas não com as altas;

  4. não tinha “envolvimento pessoal com os dados”, isto é, ao contrário de Sharma,

139 não procurava defender o hinduísmo e a vida de aldeia diante de um americano, não sendo obrigado, como Sharma, a manter seu status frente às castas altas;

  1. com Sharma, os aldeões logo determinaram que ele não comia carne nem beberia álcool, logo, não praticavam estas coisas diante do antropólogo e de seu assistente; com Moh., ao contrário, souberam de festas, muitas delas prolongadas, onde havia carne e bebidas; tudo melhorou quando os camponeses souberam que na casa do antropólogo serviam-se bebidas destiladas; em suma

140 “Aumentou proporcionalmente o nosso acesso a informações de vários tipos”;

  1. a idade de Mohammed afastou a ameaça que Sharma poderia representar às mulheres locais;

  2. por ser muçulmano, impediu suspeitas de intenções missionárias ou ligações governamentais;

  3. por ser muçulmano era “ritualmente poluído”, por suspeitarem que havia comido carne e, portanto, o antropólogo e seu auxiliar eram vistos como párias, embora respeitados pela riqueza e conhecimento;

140 Citação de Goffman (pres. of the self, 238) sobre a distinção entre região interior e região exterior:

Encontramos um grupo de atores, que cooperam na apresentação de uma determinada definição da situação para uma platéia. O que abarcará a concepção da própria equipe e da platéia e suposições referentes ao ethos, que deverá ser mantido pelas regras de polidez e decoro. Com frequência, descobrimos uma divisão entre região interior, onde a representação de uma rotina é preparada, e a região exterior, onde a representação é apresentada. O acesso a estas regiões é controlado, a fim de impedir que a platéia veja os bastidores e que estranhos tenham acesso a uma representação que não se dirige a eles. Entre os membros da equipe, descobrimos que prevale-

141 ce a familiaridade, que a solidariedade tem possibilidade de se desenvolver e que segredos, capazes de fazerem fracassar o espetáculo, são compartilhados e guardados.”

141 O controle de impressões entre o antropólogo e seus pesquisados é contínuo e recíproco e fundamental para o êxito da pesquisa:

A tarefa da pesquisa etnográfica pode ser vista como um sistema que envolve a interação social entre o etnógrafo e seus sujeitos. Considerado como um aspecto básico da interação, o controle das impressões tem, portanto, tanto um significado metodológico quanto substancial para os antropólogos.”

O etnógrafo surge diante de seus sujeitos como um intruso desconhecido, geralmente inesperado e frequentemente indesejado. As impressões que estes têm dele determinarão o tipo e a validez dos dados aos quais será capaz de ter acesso e, portanto, o grau de sucesso de seu trabalho. Entre si, etnógrafo e seus sujeitos são, simultaneamente, atores e público. Têm que julgar os motivos e demais atributos de uns e do outro com base em contato breve, mas intenso, e em seguida, decidir que definição de si mesmos e da situação circundante desejam projetar; o que revelarão e o que ocultarão, e como será melhor fazê-lo. Cada um tentará dar ao outro a impressão que melhor serve aos seus interesses, tal como os vê.”

Obs: No artigo de Howard Becker sobre “Evidências de trabalho de campo”, ele de certa forma relativiza o controle de impressões ao notar que normalmente o indivíduo observado atua sob a pressão das normas grupais, bem mais fortes e importantes para ele do que o constrangimento imposto pela presença do observador; veja-se que, de certa forma, a próxima citação que Berreman vai fazer de Goffman também leva isto em conta, falando em “aspectos incontroláveis do seu comportamento”

141 Mas o ator não pode controlar tudo diante da audiência, controla as palavras mas não os atos, cit. de Goffman,p.7:

Sabendo ser provável que o indivíduo se apresente sob uma luz que lhe é favorável, a platéia poderá dividir o que testemunha em duas partes; uma parte que é relativamente fácil de ser manipulada à vontade pelo indivíduo, construída principalmente a partir de suas afirmações verbais, e uma parte a respeito da qual parece ter pouca preocupação ou controle, inferinda sobretudo à base das expressões que manifesta. A platéia poderá então utilizar o que considera serem os aspectos incontroláveis de seu comportamento expressivo como um teste da validade do que é apresentado pelos aspectos controláveis.’

Obs: Distinção importante entre aspectos controláveis e incontroláveis do comportamento.

142 Bases de avaliação mutuamente contraditórias do antropólogo e de seus sujeitos:

“Conscientes disto, os atores tentam manter a região interior fora do alcance da percepção da platéia; controlar a representação tanto quanto seja possível, de preferência em uma medida não prevista pela platéia. Essa, por sua vez, tentará espreitar a região interior, a fim de obter novos conhecimentos sobre a natureza da representação e dos atores.

O etnógrafo é, usualmente, avaliado por si mesmo e seus colegas à base do conhecimento da região interior da representação de seus sujeitos. Estes, por sua vez, são avaliados por seus companheiros à base do grau em que protegem os segredos de seu grupo e projetam com êxito a imagem grupal, aceita pelo grupo como apresentável na região exterior. Não raro, é também provável que pensem ser esta apresentação igualmente satisfatória para o etnógrafo. Ao passo que o etnógrafo tende a avaliar seus sujeitos com base na quantidade de informações sobre a região interior que lhe revelam, ele é avaliado por eles à base do seu tato em não intrometer-se desnecessariamente na região interior e, à medida que progride o relacionamento, à base da sua sinceridade como pessoa que não revelará os segredos da região interior. Estas são bases de avaliação que tendem a ser mutuamente contraditórias.O estabelecimento do relacionamento é, em grande parte, uma questão de contorná-las, de modo a conseguir penetrar na região interior da representação dos sujeitos, sem trai-los. O que às vezes se procura mediante admissão no grupo deles e que, mais frequentemente, se alcança mediante aceitação como um confidente neutro.

As impressões, que o etnógrafo e os sujeitos procuram projetar mutuamente são, portanto, as que julgam ser favoráveis à consecução de seus objetivos respectivos: o etnógrafo procura obter informações sobre a região interior; os sujeitos procuram proteger seus segredos, já que representam uma ameaça à imagem pública que desejam manter. Nenhum deles poderá ter sucesso absoluto.”

142 “Dever-se-ia supor que a integridade do etnógrafo, enquanto cientista, garantirá a natureza confidencial de suas descobertas acerca dos indivíduos que estuda. Estes, entretanto, não tendem a fazer esta suposição e, de fato, não raro supõem o contrário.”

142 O antropólogo deve explicar sua intenção mas não suas hipóteses específicas:

“Embora eu pense ser prática e eticamente correto que o etnógrafo faça saber sua intenção de conhecer o modo de vida dos indivíduos que pretende estudar, creio ser eticamente desnecessário e metodologicamente incorreto que explicite suas hipóteses específicas e, em muitos casos, até mesmo seus campos de interesse. É bem possível que, ao confiar aos informantes esses aspectos, dificulte a possibilidade

143 de obter inúmeras informações essenciais ao objetivo principal de compreender a sua maneira de viver. Penso aqui no meu próprio interesse no aspecto altamente tenso das relações inter-castas; admitir esse interesse para certas pessoas, ou grupos, seria prejudicial à realização da pesquisa.”

Obs: De início, agi assim, como quando da entrevista com Tião Peixeiro, quando enfatizei somente a história da comunidade; após o seminário, quando dei uma cópia do artigo para Deley, de certa forma meu tema tornou-se público, embora ninguém, a não ser Deley, tenha demonstrado ter algum conhecimento sobre ele – acho que, pelo contrário, a imensa maioria não faz a menor idéia; adiantar que o nome do livro é A Honra de Acari, sem dúvida é favorável do ponto de vista da aceitação (vide Heraldo e Lélis), mas talvez leve a uma coleta viciosa de dados: as pessoas talvez falem mais na palavra honra – frise-se que ainda não falei o nome para o pessoal da Q.Areia. E quanto à publicação do artigo e do livro: que impacto terão ?

143 Se a observação participante envolve controle de impressões, logo, envolve segredo e dissimulação também, ou haverá resultados desastrosos para a pesquisa:

“Se o pesquisador se sentir moralmente constrangido a evitar qualquer forma de dissimulação, ou segredo, terá que abrir mão de grande parte da compreensão, que pode ser obtida mediante o conhecimento daqueles aspectos da vida dos informantes, que estes desejem lhe ocultar.”

(…)

De toda a forma, o etnógrafo se estará apresentando de certas maneiras a seus informantes durante a pesquisa e ocultando deles outros aspectos seus. Os informantes estarão agindo da mesma maneira. Isto é inerente a qualquer interação social.”

143 Uma solução para o problema ético: “realizar a pesquisa como devem realizá-la, mas só utilizar as descobertas com a aprovação explícita dos sujeitos

144 O problema do desrespeito involuntário das normas por parte do etnógrafo

145 A definição de Goffman, p.104, para equipe:

“… um conjunto de indivíduos cuja cooperação íntima é necessária, caso uma determinada definição projetada da situação deva ser mantida”

145 Inicialmente, os sujeitos tentam identificar o etnógrafo “em termos familiares”, ou seja, classificá-lo em um dos papéis conhecidos.

147 “Os aldeões, igualmente, tinham de si mesmos definições específicas, que desejavam apresentar à equipe de etnógrafos, em gran-

148 de parte determinadas por sua interpretação da natureza e das intenções dessa equipe.”

148 Controle de impressões no sentido de indicar uma “adesão aos ‘valores oficialmente aprovados na sociedade’”, algo característico diante de um estranho, enquanto, na verdade, os brâmanes e rajputs Paharis – castas altas da área, praticam uma série de atos inaceitáveis segundo os círculos das planícies:

  1. sacrificam animais;

  2. comem carne;

  3. consomem bebidas;

  4. desconhecem as escrituras;

  5. ignoram os grandes deuses do hinduismo;

  6. consultam advinhos e xamãs;

  7. deixam de observar inúmeras cerimônias e proibições rituais prescritas às castas altas;

  8. aceitam um preço da noiva;

  9. casam uma segunda vez suas viúvas;

  10. praticam frequentemente a poligamia;

  11. ocasionalmente fazem casamentos intercastas;

  12. compartilham as esposas quando são irmãos;

  13. vendem mulheres para indivíduos duvidosos das planícies;

149 Para evitar a “intromissão inoportuna”, os aldeões evitaram que a equipe do antropólogo se mudasse da casa na periferia da cidade para outra no centro; mais tarde, descobrem que:

O intocável que fizera a objeção fora coagido e subornado com bebidas para manifestá-la. Mais tarde, comentou que os aldeões haviam afirmado que as pessoas, particularmente as mulheres, se veriam inibidas na prática de suas atividades diárias, caso estranhos permanecessem continuamente em meio a elas; isto é, a região interior ficaria exposta à platéia.”

150 Até mesmo o julgamento de uma disputa entre dois intocáveis, levada ao conselho informal de membros de castas altas, foi interrompida “com a advertência explícita de que o etnógrafo a ouviria e pensaria mal da aldeia.”

150 Na primeira fase, com o auxiliar vindo de uma casta alta das planícies, o que fazia com que as castas baixas não se relacionassem e as altas ocultassem seu comportamento, as informações obtidas, ou eram inócuas (ou melhor, consideradas como tal pelos camponeses: tempo, acontecimentos presentes, técnicas agrícolas), ou distorcidas (relatos sobre casamento omitiam pluralidade de esposas) ou inacessíveis.

152-3 Não tendo pretensões a status, os intocáveis (isto é: a casta mais baixa, os párias) ficavam livres para comunicar aos antropólogos comportamentos sexuais ou religiosos não-ortodoxos; pelo contato diário com membros das castas altas, também conheciam as transgressões destes últimos e as comunicavam desde que não fossem postos em risco por isto; mesmo assim, isto:

não significa afirmar que os intocáveis não tem uma definição particular da situação que desejem projetar e que não se esforcem por perpetuá-la. O grupo de status mais baixo em Sirkanda, por exemplo, tentou apagar sua reputação de prática da prostituição, abandonando certas atividades a ela relacionadas. Mas o âmbito dos segredos da região interior entre as castas baixas é limitado em comparação ao seu alcance entre as castas altas.”

156 Mesmo entre as castas altas, entretanto, quando alguém desconfia que vazou uma informação relativa a ele, chega a procurar o etnógrafo para dar a sua versão minuciosa dos fatos.

Obs: Por isto, sempre evito revelar a minha ignorância, ao contrário faço sempre comentários vagos mas com um tom de insinuação bastante forte [como diria Eulália…] para que acabem comentando algo mais que eu, na verdade, não sabia. Em verdade, é quase uma arte: fazer falar o que não estariam dispostos normalmente a fazer.

157 “As equipes de representação da casta alta também diferiam entre si segundo a idade, o sexo, a educação e a experiência anterior de seus membros.

Os grupos assim definidos podem ser descritos como equipes de representação porque diferem quanto às definições da sua própria situação e da situação da aldeia, que procuram projetar para diferentes platéias. É raro, entretanto, que abandonem o grupo de casta alta diante de estranhos e das castas baixas, as duas platéias mais cruciais.”

158-9 Mesmo mais dispostos a falar, os membros das castas baixas mantiveram precauções e até mesmo estabeleceram códigos gestuais e linguísticos através dos quais o etnógrafo pudesse comunicar a proximidade de um membro de uma casta alta.

159 “Em regra, e não surpreendentemente, os indivíduos não revelavam segredos, que contrariassem diretamente a impressão que desejavam dar de si mês-

160 mos ou de membros de suas famílias. Vários tipos de segredos da região interior só foram revelados por indivíduos que não eram membros dos grupos cujos segredos revelavam.”

160 O momento em que o quebra-cabeças começa a tomar forma:

“À medida que aumentava o relacionamento e acumulavam as informações, a equipe de etnógrafos pôde empreender um estudo útil em escala mais ampla – compreender atividades e atitudes anteriormente incompreensíveis, relacionar fatos previamente disparatados, fazer perguntas inteligíveis, confrontar e verificar informações. O efeito foi cumulativo. Quanto mais sabíamos, mais informações se tornavam acessíveis.”

160 “Mantendo-nos interessados, acríticos, discretos e meticulosos quanto a respeitar sua confiança, conquistamos a boa fé dos aldeões.

Por exemplo, membros das castas altas, que evitavam manter contato estreito com Mohammed na aldeia, visitavam a sua casa na cidade e chegaram até a comer junto com ele, solicitando-lhe que não o contasse a ninguém na aldeia. Ninguém jamais descobriu essas imprudências e os que as cometiam não deixaram de apreciá-lo. Contrariamente aos temores iniciais dos aldeões, nenhum missionário, policial ou coletor de impostos, ou qualquer outro estranho chegou à aldeia em consequência do que ali havíamos sabido.”

160 Aceitar como corriqueiras coisas diante das quais os aldeões ficavam embaraçados, revelar um interesse apenas casual nos temas :

Por exemplo: quando perguntavam o nome da esposa, ouviam apenas um nome; depois passaram a perguntar quantas esposas o homem tinha e colheram mais informações;

A maioria dos aldeões não tinha consciência de que os nossos interesses eram mais amplos do que o registro formal de genealogias, técnicas econômicas e observância dos rituais. Em grande parte, inúmeros segredos foram revelados devido à aparente casualidade do interesse que por eles tínhamos e porque os aldeões se haviam acostumado à nossa presença na aldeia, de modo que não

161 nos consideravam mais uma platéia tão crucial como haviam considerado antes.”

Obs: procurei sempre passar esta lição da “espontaneidade”, da leveza e da aparente despreocupação para Cláudia e Christina. Mais um ponto a ser destacado: a ignorância das pessoas quanto à amplitude dos seus conhecimentos é fundamental, embora possa parecer desleal dizer isso.

161 Jogando “verde”:

“A precisão das informações sobre aspectos da região interior pôde frequentemente ser confrontada através de informantes, que não as teriam revelado intencionalmente, ao levantarmos com naturalidade o assunto nas conversas, como se fosse um fato de conhecimento geral. Isto é, o etnógrafo definia-o como assunto não mais restrito à região interior da representação da qual era a platéia.”

BERREMAN, In: Zaluar, 1990

161 “Alguns ‘segredos’, entretanto, não puderam ser verificados adequadamente, pela simples razão que fazê-lo acarretaria dificuldades para todos os envolvidos, especialmente os que fossem suspeitos de os terem revelado.”

Obs: Há inúmeros casos, em Acari, de fatos deste tipo, que põem em risco não o status, mas a vida das pessoas. Como no caso de Berreman, adquiri a confiança de certas pessoas, tornando-me suas “confidentes”;

162-3 Há segredos que são tão inconfessáveis que às vezes o antropólogo só os descobre casualmente (cão que trouxe um pedaço de búfalo sacrificado, por exemplo) e apenas uma criança responderia a uma pergunta a este respeito.

Obs: Ou seja, o antropólogo deve saber que muita coisa ele não sabe e nem vai saber a não ser por acidente.

163 Durante 6 meses os aldeões continuaram a praticar sacrifícios de animais fora da presença do antropólogo e só depois de Sharma ir embora é que ele foi a festas onde se consumiam carne e bebidas.

As ausências (dois ou três dias por semana) tornaram a permanência do antropólogo mais tolerável.

164 Como o desempenho das castas altas era diferenciado diante de platéias diferentes: esforçando-se por parecerem unidos diante das castas baixas e ortodoxos diante dos grupos de referência exteriores (fossem coletores de impostos ou membros de castas altas da planície), para eles era essencial a “segregação das platéias”;

166 Se apenas diante do etnógrafo, eles se comportavam de uma maneira, em público ou em presença de membros de outros grupos, de outra;

Obs: É conspícua a variação do comportamento de Deley, ou melhor, das suas declarações, aqui em casa, diante de marinheiros de primeira viagem (quando fala pior do tráfico do que de costume e evita elogiar), ou diante de outros líderes comunitários (como Heraldo, por exemplo);

167 O próprio etnógrafo teve que ocultar ou evitar determinados comportamentos e ser obrigado a outros:

  1. ocultou o quanto tomava notas, fazendo-o, sobretudo, à noite ou privadamente;

  2. abandonou entrevistas com hora marcada e questionário porque mais prejudicariam o relacionamento do que proporcionariam informações;

  3. não tirou fotografias sem permissão;

  4. ocultou costumes estrangeiros, como o uso de papel higiênico, extremamente criticado pelos indianos;

  5. Simulei gostar de panquecas de milho miúdo e da ardente mistura de pimenta e abóbora, que constitui grande parte da dieta Pahari.”

  6. Ainda mais heroicamente, ocultei que detestava a forte bebida destilada domesticamente, cujo consumo marcava cada festa e celebração.”

“Essas dissimulações objetivavam melhorar o relacionamento e valeram a pena. Com esse comportamento, mantive uma aparência a fim de sustentar uma determinada definição da minha situação; uma definição que, segundo julguei, poderia aumentar meu acesso à vida de bastidores da aldeia, e que contribuiria para o objetivo final de compreender os modos de vida desses indivíduos.”

168 “Uma aceitação polida e até mesmo a amizade nem sempre significam que está garantido o acesso às regiões interiores [vide Henrique] confidenciais da vida dos que o facilitam. O estranho será excluído de uma região vasta e vital, se for visto como alguém que não guardará segredo para as platéias às quais se dirigem os desempenhos e, especialmente, se for identificado como membro de uma dessas platéias.”

169 Tipos sociais para os quais os “esqueletos no armário” são mais embaraçosos:

“Frequentemente, entretanto, é bem provável que os esqueletos no armário sejam particularmente embaraçosos para os que posam de inocentes, ou que tentam ativamente mudar a imagem pública de si mesmos (isto é, que têm aspirações de mobilidade ascendente), enquanto aqueles cuja posição é geralmente vista como degradada ou fixa, preocupam-se menos em esconder seus esqueletos.”

171 Mesmo no interior de uma mesma casta havia variações significativas devidas a outros fatores:

a facilidade de obtenção de informações era maior entre as mulheres, crianças, homens jovens e pessoas idosas, do que entre homens em pleno esplendor – os que eram responsáveis pelo status e bem-estar de suas famílias e castas. Os informantes mais relutantes acerca de seus próprios grupos eram, consistentemente, os homens de 35-55 anos de idade. Preo-

172 cupavam-se frequentemente e temiam que seus filhos, esposas e os mais jovens, ou mais idosos, revelassem demasiado.” Também os mais jovens, mulheres ou mais velhos ficavam mais inibidos na presença dos adultos em pleno esplendor.

172 “Procurei mostrar que há mais de uma ‘equipe’ na composição de Sirkanda; mais do que uma definição da situação da aldeia é apresentada, ou pode ser apresentada, a um estranho. À medida que o etnógrafo obtém acesso às informações de indivíduos pertencentes a grupos sociais diferentes e em situações distintas, é provável que se torne mais consciente disso.”

172 Não há representação de um grupo mais verdadeira do que a de outro grupo ou representação planejada versus a de bastidores, pois “todas são essenciais à compreensão da interação social que se observa”.

Citação de Goffman, pp.65-66:

“Embora pudéssemos adotar a noção do senso comum, segundo a qual as aparências promovidas podem ser desacreditadas por uma realidade discrepante, muitas vezes não há qualquer razão para reivindicar que os fatos discrepantes com tal aparência constituem uma realidade mais real do que a realidade promovida que contradizem. Uma visão cínica dos desempenhos quotidianos pode ser tão parcial quanto a que é patro-

173 cinada pelo ator. Para vários problemas sociológicos, é possível que não seja siquer necessário decidir qual delas é a mais verdadeira, se a impressão promovida, ou aquela que o ator tenta impedir que a platéia receba.”

173 A região interior não é mais verdadeira, mas é parte significativa do todo e não conhecê-la significa ter “uma visão artificial e distorcida de seus sujeitos, na melhor das hipóteses”

173 “O comportamento que difere diante de platéias distintas é em cada contexto igualmente revelador, igualmente verdadeiro.

O aldeão que dança possuído por uma divindade local, durante um ritual xamanístico, e que diz ao brâmane visitante que só venera o grande deus Shiva, pode acreditar em ambos ou em nenhum deles, mas, em cada caso, estará reagindo, em parte, ao seu meio social, de modo a manter ou a melhorar nele a sua posição. A partir de seu comportamento, podem-se fazer inferências quanto às pressões que sofre em cada situação e, em última instância, quanto ao sistema social no qual funciona, senão mesmo quanto aos ‘verdadeiros’ sentimentos que abriga.”

173 A dissimulação não é exclusividade dos aldeões indianos ou dos etnógrafos e sim parte da vida cotidiana

174 “Em uma sociedade rigidamente estratificada, as opiniões e comportamentos de um estrato não são suficientes para uma compreensão de toda a sociedade.”

174 “Ao chegar a um grupo assim organizado, o etnógrafo será inevitavelmente identificado mais estreitamente um, ou mais, estratos, do que com outros, fato que em grande parte determina as informações que obtém e, portanto, a sua análise do sistema. [grifo meu] Ao selecionar seus empregados e outros auxiliares, deve tê-lo em mente. Ao proceder à análise, deve ter consciência das distorções de seus dados, que resultam do fato de que é identificado por seus sujeitos com certos grupos ou indivíduos, e de que o desempenho que percebe é, em grande parte, determinado por esse fato.”

174 “O controle das impressões constitui um aspecto de qualquer interação social. Trata-se aparentemente, de uma condição necessária à continuidade da interação social.

Para uma pesquisa etnográfica competente, é essencial compreender a sua natureza e os desempenhos resultantes. Devem ser empregados procedimentos metodológicos que revelem não só o desempenho montado para o observador, mas também a natureza dos esforços empregados na sua produção e a situação de bastidores que oculta.”

“Etnografia e Controle de Impressões em uma Aldeia do Himalaia”, in A. Zaluar (org.), Desvendando Máscaras Sociais. Rio de Janeiro:Francisco Alves,1990. 2.ed.