/Uma verdadeira aula de Levi-Strauss sobre a família

Uma verdadeira aula de Levi-Strauss sobre a família

ÉVI-STRAUSS,Claude. “A família”, In: SHAPIRO, A.L. Homem, Cultura e Sociedade. São Paulo: Cultrix, 1966. pp.308-333.

[observação: este artigo tem a forma de uma equação matemática resolvida elemento a elemento]

Estrutura do texto:

  1. A questão / definição de família (308-314)

  2. O CASAMENTO E A FAMÍLIA (314-318)

  3. FORMAS DE FAMÍLIA (318-321)

  4. OS LAÇOS FAMILIARES / conclusões (321-333)

I. A questão / definição de família (308-314)

308 “o estudo comparativo da família entre muitos povos diferentes deu origem a alguns dos mais acirrados debates em toda a história do pensamento antropológico e, provavelmente, à sua invenção espetacular.”

308 Para os evolucionistas, que tomavam as instituições de sua época como o estágio mais avançado, a família baseada no casamento monogâmico, predominante na época era vista como o ponto final de uma trajetória que começava com estágios fantasiosos do tipo “casamento em grupo” e “promiscuidade” (primitiva) [derivada da confusão entre termos classificatórios e descritivos por parte de Morgan]

308-9 Isto terminou quando se percebeu que mesmo grupos como os andamaneses do Oceano Índico, os fueginos do extremo meridional da América do Sul, os nhambiquaras do Brasil Central ou os bushmen da África do Sul, embora vivendo em bandos seminômades e dispondo de baixo nível tecnológico e pouca ou nenhuma organização política, tem na família a sua única estrutura social e geralmente monogâmica.

309 Há duas maneiras de interpretar isso: como uma Idade Áurea a que teria se seguido um longo período de decadência, com a reabilitação surgindo somente com a família cristã e o outro, no sentido de pensar que “a vida familiar está presente praticamente em todas as sociedades, mesmo naquelas que possuem costumes sexuais e educacionais bastante distantes dos nossos.”

309 LST acha que isso seria incorrer no erro inverso, em um excesso de simplificação e dá alguns exemplos:

  1. entre os naires, grupo extenso que vive na costa do Malabar, na Índia,

310 na época em que a vida guerreira predominava, “O casamento era uma cerimônia puramente simbólica da qual não resultava qualquer laço permanente entre um homem e uma mulher. Aliás, às mulheres casadas era permitido ter quantos amantes quisessem. As crianças pertenciam exclusivamente à linha materna e a autoridade familiar, assim como a territorial, era exercida pelos irmãos da mulher e não pelo seu efêmero marido. Uma vez que a terra era cultivada por uma casta inferior, subserviente aos naires, tanto os irmãos de uma mulher quanto seu marido temporário ou seus amantes ficavam inteiramente livres para se dedicarem às atividades militares.” [parece muito com o caso espartano]

  1. os massais e os jangas, embora reconhecessem a família, isto não valia para os homens mais jovens, que tinham que se dedicar às atividades guerreiras e não podiam casar nem constituir família; era-lhes permitido, entretanto, “manter relações promíscuas com a classe mais jovem de mulheres adultas”;

311 iii. Em uma tribo australiana do noroeste, os wunambal, “um indivíduo que não se dispusesse a emprestar sua esposa aos outros maridos em potencial, durante as cerimônias, seria considerado ‘muito cúpido’, isto é, desejoso de guardar só para si um privilégio destinado pelo grupo social a ser compartilhado por numerosas pessoas com igual direito ao mesmo” [novamente, parece com a instituição espartana que permitia a um homem jovem solicitar a esposa de um marido já idoso]. Nesta sociedade, é bom notar, o dogma oficial rezava que “os homens nada tem a ver com a procriação fisiológica (negando desta forma, duplamente, a existência de qualquer ligação entre o marido e os filhos de sua esposa)”, o que tornava a família “um grupamento econômico, onde o homem trazia os produtos de sua caça e a mulher os de sua coleta e de sua apanha”.

312 iv. Poligamia pode ser, na verdade:

poliginia (como entre os bantos, em que as mulheres e seus filhos vivem cada uma em uma cabana ou como entre os tupis-cavaíbas do Brasil Central onde as crianças são criadas em conjunto pelas mulheres, que podem ser emprestadas pelo chefe aos seus irmãos, cortesãos ou até mesmo visitantes) ou

poliandria (às vezes irmãos compartilham a mesma mulher e é considerado pai legítimo aquele que “cumpre um cerimonial especial e assim permanece o pai legal de todas as crianças que nascerem, até que outro marido resolva assumir os direitos de pai pelo mesmo processo” ou como no Tibete ou Nepal, em que a ocupação semi-nômade dos homens (carregadores e guias) faz com que a poliandria permita haver sempre um homem para sustentar o lar)

313 v. “Casamento em grupo”; curiosamente, foi pela intervenção européia que os todas, no século XIX, se aproximaram disto. Seu sistema era poliândrico permitido pelo infanticídio feminino. Quando a administração britânica proibiu esta última prática, eles continuaram a praticar a poliandria, mas como o número de mulheres aumentou muito, agora, “em vez de vários irmãos compartilharem uma esposa, tornou-se possível desposarem várias”;

vi. “ a família conjugal monogâmica é relativamente frequente. Sempre que ela parece ter sido superada por tipos diferentes de organização, isto se dá em sociedades muito especializadas e sofisticadas e não, como anteriormente se esperava, nos tipos mais rudes e simples.” [enigma que ele vai resolver no final do texto]

A QUESTÃO:

313 “os poucos exemplos de família não-conjugal (mesmo das formas poligâmicas) estabelecem de modo irretorquível que a elevada freqüência do grupamento social do tipo conjugal não decorre de uma necessidade universal. É pelo menos concebível

314 que uma sociedade perfeitamente estável e duradoura possa existir sem ele. Daí o difícil problema: SE NÃO EXISTE LEI NATURAL ALGUMA QUE TORNE A FAMÍLIA UNIVERSAL, COMO EXPLICAR SUA OCORRÊNCIA, PRATICAMENTE, EM TODA PARTE ?

314 Então, como definir família:

“um grupo social possuidor de, pelo menos, três características:

  1. tem sua origem no casamento

  2. é constituído pelo marido, pela esposa e pelos filhos provenientes de sua união, conquanto seja lícito conceber que outros parentes possam encontrar o seu lugar próximo ao núcleo do grupo;

  3. os membros da família estão unidos entre si por (a) laços legais, (b) direitos e obrigações econômicas, religiosas ou de outra espécie, (c ) um entrelaçamento definido de direitos e proibições sexuais, e uma quantidade variada e diversificada de sentimentos psicológicos, tais como amor, afeto, respeito, medo etc.”

II. O CASAMENTO E A FAMÍLIA (314-318)

314-315 O casamento monogâmico e não o poligâmico, predomina porque a proporção de homens e de mulheres tende a ser a mesma, a não ser que haja condições especiais, criadas voluntaria ou involuntariamente; involuntariamente como entre esquimós e algumas tribos australianas em que as ocupações masculinas (caça à baleia e guerra, respectivamente) eram tão perigosas que o número de mulheres tendia a ser mais alto poliginia; voluntariamente quando do infanticídio feminino (já citado) ou masculino; por vezes, também, o que permite, sobretudo a poliginia, é a existência de uma estrutura hierárquica e de privilégios atribuidos aos chefes, aos anciãos, aos sacerdotes, aos magos ou aos ricos etc.

315 Em meio a essa enorme variedade (monogamia x poligamia, por permuta, compra, livre escolha ou imposição familiar), “o fato digno de nota é que, em toda a parte, existe

316 uma distinção entre o casamento, isto é, um vínculo legal e aprovado pelo grupo entre um homem e uma mulher, e o tipo de união, permanente ou temporária, que resulta da violência ou do simples consentimento.”, isto é, distinguem entre uniões legítimas e uniões livres.

[ diria Foucault que o dispositivo de aliança baseia-se nesta distinção entre o lícito e o ilícito]

Algumas características bastante difundidas em relação ao casamento (mas não universais):

  1. quase todas as sociedades conferem alto grau de distinção ao estado de casado”

  2. por outro lado, na maioria das sociedades há um sentimento de repulsa para com os solteiros e também em relação aos casais sem filhos

317 iii. “Constitui quase que uma característica universal do casamento o fato de que é originado, não pelos indivíduos, mas pelos grupos interessados (famílias, linhagens, clãs etc); de que une os grupos, antes e acima dos indivíduos” (…) “embora o casamento dê origem à família, são as famílias que produzem o casamento, como principal expediente legal de que dispõem para estabelecer alianças entre si. Como dizem os nativos da Nova Guiné, o verdadeiro propósito do casamento não é tanto o de obter uma esposa mas o de conseguir cunhados.”; se a união é entre grupos, ficam explicados o costume do levirato e do sororato [e, no caso grego, do epiclerato];

318 “Qualquer que seja o modo, entretanto, pelo qual a coletividade manifesta seu interesse no casamento de seus membros, quer pela autoridade de que estão investidos fortes grupos consanguíneos ou mais diretamente pela intervenção do Estado, a verdade é que o casamento não é, nem nunca será nem poderá ser um assunto particular

III. FORMAS DE FAMÍLIA (318-321)

A partir de vários exemplos de famílias e embora admitindo

O instinto materno

318 “Existe, sem dúvida, um instinto materno que obriga a mãe a cuidar de seus filhos e faz com que ela sinta intensa satisfação no desempenho de tais atividades.”

E impulsos psicológicos de paternidade

318 “Existem também impulsos psicológicos por força dos quais um homem pode nutrir sentimentos afetivos para com a prole da mulher com quem vive e cujo desenvolvimento acompanha passo a passo, ainda não acreditando (como acontece entre as tribos que, segundo consta, negam a paternidade fisiológica) que tenha tomado qualquer parte na procriação.”

318 “A grande maioria das sociedades, entretanto, não demonstra interesse muito intenso por um tipo de grupamento que, pelo menos para as outras (inclusive a nossa), parece tão importante. Aqui, também, o importante são os grupos, não o agregado temporário de indivíduos representativos do grupo.”

Distinção e diferenciação (em termos de grau de importância) entre as normas morais (fidelidade conjugal e afeto entre pais e filhos) e as normas legais (que estabelecem as relações da prole com a linha paterna ou materna):

319 “A fragilidade da família conjugal, tão comum entre os chamados povos primitivos, não os impede de dar certo valor à fidelidade conjugal e ao afeto entre pais e filhos. Estas, entretanto, são normas morais e devem ser rigidamente contrastadas com as regras legais, que em muitos casos reconhecem formalmente as relações da prole com a linha paterna ou com a linha materna ou, quando as duas linhas são formalmente reconhecidas, o são para tipos totalmente diferentes de direitos ou de obrigações.” [o ex. (318-319) anteriormente citado de direitos territoriais herdados de uma linha e privilégios e obrigações religiosas de outro, ou condição social e técnicas de magia]

A partir do exemplo do emerillon da Guiana ele conclui:

319 “Podem existir condições nas quais a família conjugal é praticamente irreconhecível.”

Os termos famílias conjuntas e famílias extensivas são ilusórios:

320 “uma vez que dão a idéia de que essas grandes unidades são constituídas de pequenas famílias conjugais.”

E o processo deve ter sido o inverso a família conjugal é que deve ter se formado a partir da contração deste grupo mais extenso, portanto:

320 “seria mais a família conjugal que mereceria o nome de família restrita.”

Mas ele admite ser verdade que:

320 “a família conjugal limitada a mãe e filhos seja praticamente universal, por baseada na dependência fisiológica e psicológica existente entre seus membros, ao menos durante algum tempo”

e

320 “a família conjugal consistindo de marido, esposa e filhos seja quase tão freqüente, por razões psicológicas e econômicas que se devem acrescentar às já mencionadas.”

Há sociedades em que o tipo de consorte a ser desposado é mais importante do que o tipo de união

320-321 Entre os chukchees siberianos onde uma mulher de 20 se casa com marido de 2 e 3 anos e tem um amante autorizado de quem ela tem filhos, criando-os junto com o marido

E há casos em que nem mesmo a dualidade de sexos é respeitada

321 Em várias partes da África em que mulheres de alta posição casavam-se com outras e faziam com que estas tivessem filhos (com amantes não-reconhecidos) e tornavam-se “pais” destas crianças, que herdavam seu nome, posição e riqueza

e também a “pupilagem” em que o casal reproduz mas não cria seus próprios filhos (e.g. sociedade feudal européia)

IV. LAÇOS FAMILIARES / conclusões (321-333)

Casamento e satisfação do desejo sexual: uma relação não necessária nem universal

321-322

São as necessidades econômicas (e não o desejo sexual) que estão em primeiro lugar

322

A divisão do trabalho resulta mais da ordem social e cultural do que da ordem natural

322

A divisão entre os sexos é quase universal, o modo como se dá é variável (e, portanto, artificial)

322-323

QUESTÃO: SE NÃO É POR RAZÕES BIOLÓGICAS, PORQUE EXISTE TAL DIVISÃO ?

323

Resposta: a divisão por sexos, ao proibir determinadas funções a um ou outro sexo, é uma maneira de criar a dependência recíproca entre os sexos

323

Da mesma maneira, a família, ao impor restrições matrimoniais (no seu interior, sobretudo), cria uma dependência entre as famílias

323-324

324 “os perigos dos casamentos consanguíneos são antes o resultado da proibição do incesto do que a sua explicação”, isto porque:

Os geneticistas mostraram que, embora os casamentos consanguíneos tenham probabilidade de causar maus efeitos em uma sociedade que sistematicamente os evitou no passado, o perigo seria muito menor se a proibição não tivesse existido, uma vez que desta forma as características hereditárias nocivas ter-se-iam manifestado sendo automaticamente eliminadas pela seleção. Aliás, é essa a maneira pela qual os criadores aprimoram a qualidade de seus espécimes. (…) Ademais, de vez que muitos povos primitivos não participam de nossa crença nos perigos biológicos decorrentes dos casamentos consanguíneos e possuem teorias inteiramente diferentes, a razão deverá ser procurada alhures e de modo a ser mais coerente com as opiniões esposadas pela humanidade de um modo geral.”

325 “a proibição do incesto estabelece a dependência mútua entre as famílias, compelindo-as, para que se possam perpetuar, a dar origem a novas famílias.”

(…)

poderíamos ter destacado o aspecto positivo do incesto, chamando-o de princípio da divisão dos direitos matrimoniais entre as famílias.”

“tal proibição é na realidade uma espécie de remodelação das condições biológicas do acasalamento e da criação (que não conhecem regras, como se pode observar na vida dos animais) obrigando a uma perpetuação

326 estritamente dentro de um corpo artificial de obrigações e tabus. É aí, e somente aí, que encontramos uma passagem da natureza para a cultura, da vida animal para a vida humana, e que nos encontramos em condições de compreender a verdadeira essência de sua articulação.”

Tylor explicava: “casar fora” ou “morrer fora” ou de como os laços de afinidade constroem os laços de afinidade

326

Exemplos dos jogos complicados de regras de mesclagem (regras de parentesco)

326-327

Exemplo da equação do parentesco

330-331

CONCLUSÃO IMPORTANTE:

331 “NÃO SE PODE CONSIDERAR A FAMÍLIA RESTRITA COMO O ELEMENTO DO GRUPO SOCIAL, NEM SE PODE DIZER QUE DELE RESULTA. Diríamos, então, que o grupo social somente pode se estabelecer em contradistinção com a famí-

332 lia, e, de certo modo, em concordância com a mesma, desde que PARA MANTER A SOCIEDADE ATRAVÉS DOS TEMPOS AS MULHERES DEVEM PROCRIAR, DEVEM BENEFICIAR-SE DA PROTEÇÃO MASCULINA DURANTE OS PERÍODOS DE RESGUARDO E DE CRIAÇÃO DOS FILHOS E, JÁ QUE SE TORNA NECESSÁRIO UM CONJUNTO PRECISO DE REGRAS, DEVEM TAMBÉM PERPETUAR ATRAVÉS DAS GERAÇÕES O PADRÃO BÁSICO DA CONTEXTURA SOCIAL.”

(…)

a palavra das escrituras – ‘deixarás o teu pai e a tua mãe’ – proporciona a regra de ferro para o estabelecimento e o funcionamento de qualquer sociedade.”

A resolução do enigma: a razão pela qual a família monogâmica é encontrada nos dois extremos da escala social, as sociedades mais simples e as mais complexas:

332 Já que: “A sociedade pertence ao reino da cultura, enquanto a família é a origem, no nível social, daqueles requisitos naturais sem os quais não poderia haver sociedade nem, certamente, humanidade.”

(…)

as sociedades mais simples “não se encontram em posição que lhes permita pagar o preço de uma divergência muito grande”

e as mais complexas “já sofreram suficientemente as conseqüências de seus erros para compreender que a conformidade é a melhor política.”