/Bourdieu e Pitt-Rivers: o conceito de honra

Bourdieu e Pitt-Rivers: o conceito de honra

BOURDIEU

27 O nif ou “sentimento de honra” entre os kabile, sempre “vivenciado diante dos outros”:

“O nif é antes de tudo o que leva a defender, não importa a que preço, uma certa imagem de si mesmo destinada aos outros. ‘O homem de bem’ (argaz el’ali) deve estar sem cessar em guarda; ele deve vigiar suas palavras que, ‘semelhantes à bala do fuzil, não retornam mais’; e isto ainda mais porque cada um de seus atos e cada uma de suas palavras engajam a todo o seu grupo. ‘Se os animais são amarrados pela pata, os homens são presos pela língua’. O homem que não vale nada é, ao contrário, aquele que diz ser ‘ithatsu’, ‘ele tem costume de esquecer’. Ele esquece sua palavra (awal), i.e. seus compromissos, suas dívidas de honra, seus deveres.”

(…)

29 “ ‘O homem [é homem] pelos homens; [só] Deus, [é Deus] por si mesmo’ “

BOURDIEU, Pierre. Ésquisse d’une théorie de la pratique. Genève: Librairie Droz, 1972.


PITT-RIVERS

17 A origem latina do termo honra (honos):

“Originalmente, a palavra ‘honra’ (em latim: honos) designava uma divindade que representava a coragem na guerra. Por consequência, significava a concessão de terras, merecidas com a vitória; depois, essa base material serviu à elaboração de um conceito moral de extrema complexidade, para não dizer ambigüidade.”

17 Um conceito muito pouco estudado: apenas nos últimos 25 anos (i.e. de 1966 para cá)

“Foi só há 25 anos que as ciências sociais reconheceram a sua existência – elas, que têm fama de se interessar pela conduta e pelas suas motivações! – e, o pouco publicado anteriormente sobre o tema se limitava a estudos da história do conceito na literatura e a alguns verbetes tendenciosos nas enciclopédias.”

18 As razões desta negligência, ou desconfiança, quanto à honra como tema, estão “nas dificuldades inerentes à análise da honra” (e da sua definição):

“já que é um sentimento e um fato social objetivo ao mesmo tempo; de um lado, um estado moral que provém da imagem que cada um tem de si e que inspira ações as mais temerárias ou a recusa de agir de uma maneira vergonhosa, seja qual for a tentação material – e ao mesmo tempo um meio de representar o valor moral do outro: sua virtude, seu prestígio, seu status e, assim, seu direito à precedência.”

18 Outra ambiguidade: é individual e coletiva ao mesmo tempo

“Enquanto motivação da conduta que só responde a Deus nas profundezas da sua consciência, a honra é puramente individual, pois depende da vontade de cada um. Porém, a honra é coletiva e pode se fixar num grupo social: família, raça, pátria, seja qual for a comunidade com a qual se identifique. No século XVIII, Mad Jack Mytton saltou a cavalo do alto de uma falésia para salvar a honra da fidalguia de Shropshire e sobreviveu milagrosamente.”

18 Mais uma ambiguidade: varia segundo o sexo e a classe social [e também segundo a idade, acrescentaríamos, vide as mulheres saraktasani], por exemplo:

“Além disso a honra – ou a conduta ditada pela honra – varia de acordo com o lugar de cada um na sociedade. A honra de um homem exige dele coragem, o que não é imposto à mulher, ao passo que para ela é a pureza sexual, ou era até algum tempo atrás. Os componentes da honra também variam de acordo com a classe social: a honra aristocrática, originalmente militar, se distinguia da honra burguesa ou da honra popular, sem contar as diferenças entre grupos sociais e entre profissões, comunidades ou regiões. A concepção de honra da ‘honrosa sociedade’, como a máfia siciliana quer ser chamada, tem pouco em comum com aquela dos prelados da ilha. Entretanto, uma vez que a honra tem a sua origem no coração de cada um e que por isso é sentida antes de ser concebida, é raro que as diferentes maneiras de alcançá-la sejam objetivamente reconhecidas. Para cada um existe somente uma noção de honra, a sua. Aqueles que a concebem de outra maneira simplesmente não a têm.”

18 Definição concisa de honra:

“O aspecto subjetivo da honra deve contudo entrar em contato com a realidade, já que o sentimento pessoal que se manifesta na conduta cedo ou tarde será julgado pelos outros. Assim, a aspiração do indivíduo à honra exigirá ser reconhecida publicamente: a honra sentida se transformará então em honra provada e terá seu reconhecimento na forma de reputação, de prestígio e de ‘honras’. Resumindo, a honra é a soma das aspirações do indivíduo (e, assim, o equivalente de sua vida, como se disse com frequência) e também o reconhecimento que os ou-

19 tros lhe concedem.”

19 Outra dificuldade: a honra não é reconhecida igualmente por todos

“Mas a dificuldade desse modelo ideal é que o reconhecimento não é homogêneo em nenhuma sociedade. O soberano, ‘fonte da honra’, nem sempre tem os mesmos critérios que a vox populi: os interesses políticos da monarquia não são absolutamente compartilhados pelo povo e ela não tem idéia da reputação de uma pessoa perante seus vizinhos. Assim, é possível, como notou Montesquieu, estar acumulado ao mesmo tempo de infâmia e de dignidades.”

19 “Na Renascença, o Estado tirou das mãos divinas o regulamento da questão da violência, mas sem o conseguir totalmente, [e o duelo perdurou até o século XX] pois se viu desenvolver, primeiramente na Itália, uma jurisprudência paralela que

20 reinava nos ‘assuntos de honra’. O duelo, combate singular submetido a essa jurisprudência, assegurava ‘satisfação’ [grifo meu] àquele que se acreditava lesado na sua honra, que saía vencedor, ferido (e, assim, vencido) ou morto. Pois, curiosamente, o fato de sair vencido não significa a desonra. Desonrado é aquele que se recusa a arriscar a vida para defender sua honra. ‘Ter satisfação’ [grifo meu] não implica ter razão, mas apenas ter a coragem de lutar. Não se trata de uma ordália, mas de uma prova. A satisfação está assegurada aos dois combatentes através do ‘primeiro sangue’, pois a ‘limpeza da honra não se faz senão com sangue’, segundo Théofile Gautier.

O hábito do duelo, deplorado pelos filósofos mas aprovado pela nobreza e pelos militares, persistiu até o século XX, apesar da interdição do Estado e da Igreja, ridicularizados: uma lógica social apelava às forças profundas da conduta humana, que nem a prisão nem a excomunhão poderiam embaraçar. Foi exemplar o caso do oficial francês, demitido pelo Ministro da Guerra no começo do século, por ele ter levado à justiça o homem que o havia ofendido, ao invés de chamá-lo para um duelo – em suma, demitido por não ter infringido a lei. Esse respeito à lei civil significava, aos olhos de seu Ministro, uma falta de sentimento de honra.”

21-2 Montesquieu, Voltaire e a distinção monarquia-honra x república- virtude ou “honra=precedência” versus “honra=virtude”:

21 “Entre os princípios que governam a vida política, Montesquieu

22 acentuava dois: o da monarquia, que é a honra, e o da república, que é a virtude. Ele foi mal interpretado por Voltaire, que não compreende a diferença entre o princípio condutor de um sistema político e a avaliação moral da conduta das pessoas submissas a esse sistema. É verdade que a realeza é a fonte da honra segundo a tradição da história antiga, mas a honra está sempre presente na república, como aliás a virtude – Montesquieu se referia à virtude cívica – está na monarquia. Eu prefiro considerar as duas como ‘honra’, diferenciando entre ‘honra=precedência’ e ‘honra=virtude’, que correspondem ao aspecto social e ao aspecto ético da honra. Essa distinção salienta o fato de que se o rei ou o presidente da República é a fonte da honra (é ele que distribui ‘as honras’), existe uma outra, que é a aclamação da população, o reconhecimento público das qualidades honrosas. A possibilidade de um conflito entre esses dois critérios, precedência e virtude, é um tema popular desde a história de Cid até os nossos dias, apesar de todas as mudanças históricas acontecidas de uma época a outra nos critérios que definiam a honra.”

22 O exemplo mais espetacular desta disputa entre precedência e virtude: Cromwell

“Quando Cromwell falava da oposição entre os ‘homens de honra’ e os ‘homens de consciência’, ele concebia os primeiros no mesmo sentido que Montesquieu, quer dizer, no da ‘honra=precedência’, e está claro que ele não se incluía entre eles. Os partidários das duas partes dessa guerra civil se caracterizavam pelo comprimento dos cabelos – o que não deixa de ter a sua significação simbólica: os ‘Roundheads’, homens de consciência, tinham-nos curtos; os partidários do rei, os ‘cavaleiros’, tinham-nos longos.

Após a queda do Commonwealth e da restauração da monarquia, os cabelos longos voltaram à moda e, com eles, a concepção monarquista da honra. A honra sexual substitui os escrúpulos religiosos e a probidade financeira. Os teatros reabrem suas portas e, durante uma década, não oferecem nada além de comédias que tratavam de maridos enganados: por exemplo, The Golden Horn, A horn for cuckolds e The country wife, onde o herói, senhor Horner [Horn é chifre em inglês], se dá bem em suas numerosas seduções, fazendo correr o boato de que é impotente, logo, o perfeito conquistador.”

PITT-RIVERS,J. “A doença da honra”, In: CZECHOWSKY,N. (Org.) A honra: imagem de si – um ideal equívoco. Porto Alegre: L& PM, 1992. pp. 17-32.

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21 Analogia entre o conceito de honra e de magia:

“A noção de honra é algo mais do que um meio de expressar aprovação ou desaprovação. Possui uma estrutura geral visível nas instituições e nos hábitos de julgamento (evaluación) que são particulares a uma cultura determinada. Podemos comparar este conceito com o de mágico, no sentido de que, dembora seus princípios possam ser detectados sempre, em qualquer lugar (por doquier), encontram-se revestidos de concepções que não são exatamente equivalentes em um lugar e outro.”

30 “Marcel Mauss havia inclusive notado essa semelhança entre o mana dos polinésios e nosso conceito de honra [isto é: de que é constituída de elementos universais]”

22 Definição de honra:

“A honra é o valor de uma pessoa aos seus próprios olhos, mas também aos olhos de sua sociedade. É a avaliação de seu próprio valor ou dignidade, sua pretensão ao orgulho, mas também o reconhecimento desta pretensão, sua excelência reconhecida pela sociedade, seu direito ao orgulho. (…) A honra [el honor em espanhol, é masculino, em português, a honra, feminino], portanto, proporciona um nexo entre os ideais de uma sociedade e a reprodução destes mesmos ideais no indivíduo, pela aspiração deste a personificá-los. Neste sentido, implica não somente uma preferência habitual por um determinado modo de conduta, mas a obtenção do direito a certo tratamento como recompensa. O direito ao orgulho é o direito à categoria (tanto no sentido popular como no antropológico da palavra), e a categoria se estabelece pelo reconhecimento de certa identidade social. Quando a jovem inglesa pretende ‘não ser desse tipo de jovem’ está falando da sua honra, e nos dramas de Calderón os heróis invocam sua honra com uma frase tipo: Soy quien soy.”

PITT-RIVERS,J. “Honor y categoria social” In: PERISTIANY,J.G. (Org.) El concepto del honor em la sociedad mediterranea. Barcelona: Labor, 1968. pp. 21-75.