“Maquiavel tentou interpretar esse fenômeno insólito, produzido em Florença em fins do século XV – a ditadura de Savonarola. O exemplo é demonstrativo. Com efeito, nada parecia favorecer o sucesso desse monge dominicano inflamado, que se tornou o artesão solidário de uma revolução social, econômica e política. Ele surgiu, ‘inspirado por Deus’, em uma cidade dominada pelo ateísmo. Ele prega e moraliza. Ele diz o que é ‘o governo natural de Florença’. Ele lança éditos e domina sem participar diretamente, a vida política, através das instituições. Savonarola mobiliza o povo, encontra apoio nas artes, organiza uma propaganda que provoca a adesão e formação dos ‘novos cidadãos’. Ele dramatiza habilmente, suscitando as encenações de rua. Ele restabelece o Carnaval, fazendo dele um meio de moralização; ele faz transformar as canções libertinas em hinos da ‘milícia da virtude’. Ele espalha as fogueiras da vaidade, queimando os sinais de luxo e com eles o mal. Mas, a grande festa das aparências é situada em outro plano. A religião é empregada para uma transformação política total. Florença é colocada debaixo da realeza do Cristo e o monge inspirado, em ‘embaixada junto à Virgem’, faz de sua profecia um programa. Ele constrói uma cidade divina, ele já a mostra, sua pregação transforma o imaginário em presença. Savonarola fala e é obedecido. A mecânica empregada para produzir efeitos é a máquina oratória. O poder adquirido é teatral na acepção mais imediata do termo. Nasce de uma voz, no sentido lírico do termo. P.J. Salazar, em um estudo recente, considera que Florença é então submetida a ‘uma ditadura da voz’. É com este desempenho que o imaginário e a ideologia se tornam ilusões realizadas.”
BALANDIER,Georges. O poder em cena. Brasília: UNB, 1982.