ADORÁVEL (continuação)
“3. Encontro pela vida milhões de corpos; desses milhões posso desejar centenas; mas dessas centenas, amo apenas um. O outro pelo qual estou apaixonado me designa a especialidade do meu desejo.
Esta escolha, tão rigorosa que só retém o Único, estabelece, por assim dizer, a diferença entre a transferência analítica e a transferência amorosa; uma é universal, a outra é específica. Foram precisos muitos acasos, muitas coincidências surpreendentes (e talvez muitas procuras), para que eu encontre a Imagem que, entre mil, convém ao meu desejo. Eis um grande enigma do qual nunca terei a solução: por que desejo Esse? Por que o desejo por tanto tempo, languidamente? É ele inteiro que desejo (uma silhueta, uma forma, uma aparência)? Ou é apenas uma parte desse corpo? E, nesse caso, o que, nesse corpo amado, tem tendência de fetiche em mim? Que porção, talve incrivelmente pequena, que acidente? O corte de uma unha, um dente um pouco quebrado obliquamente, uma mecha, uma maneira de fumar afastando os dedos para falar? De todos esses relevos do corpo, tenho vontade de dizer que são adoráveis. Adorável quer dizer: este é o meu desejo, tanto que único. ‘É isso! É exatamente isso (que amo)! ‘No entanto, quanto mais experimento a especialidade do meu desejo, menos posso nomeá-la; à precisão do alvo corresponde um estremecimento do nome; o próprio do desejo não pode produzir senão um impróprio do enunciado: Deste fracasso da linguagem, só resta um vestígio: a palavra ‘adorável’ (a boa tradução de ‘adorável’ seria o ipse latino: é ele, é ele mesmo em pessoa).”
Roland Barthes. Fragmentos de um discurso amoroso. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1981.