/BARTHES – Um pontinho no nariz – continuação

BARTHES – Um pontinho no nariz – continuação

“Rusbrock está enterrado há cinco anos; é desenterrado; seu corpo está intacto e puro (pudera! senão não haveria história); mas: ‘havia apenas um pontinho no nariz que tinha um leve traço de decomposição’. Sobre a figura perfeita e embalsamada do outro (que tanto me fascina), percebo de repente um ponto de decomposição. É um ponto mínimo: um gesto, uma palavra, um objeto, uma roupa, alguma coisa insólita que surge (que aponta) de uma região de que eu nunca havia suspeitado antes, e devolve bruscamente o objeto amado a um mundo medíocre. Seria o outro vulgar, ele cuja elegância e originalidade eu incensava com devoção? Ei-lo que faz um gesto através do qual se revela nele uma outra raça. Fico alarmado: ouço um contra-ritmo: algo como uma síncope na linda frase do ser amado, o ruído de um rasgo no invólucro liso da Imagem.
(Como a galinha do jesuíta Kircher, que é tirada da hipnose com um tapinha, estou provisoriamente desfacinado, não sem dor.)”

Roland Barthes. Fragmentos de um discurso amoroso. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1981. p.19.