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Carolina Maria de Jesus e a nova escravatura

O maior sucesso editorial do Brasil de 1960, que esgotou edições sucessivas e gerou matérias jornalísticas e artigos em revistas importantes foi escrito por uma mulher negra. Ela estudara até a segunda série e morava na favela do Canindé, em São Paulo, onde hoje é a Marginal do Tietê. Chamava-se Carolina Maria de Jesus e vivia em condições precárias com seus filhos, sobrevivendo como catadora de papel e metal, sem falar nos alimentos que apanhava aqui e ali, inclusive no lixo. Tinha sido descoberta em 1958 pelo jornalista Audálio Dantas, que editou o mínimo possível os vinte cadernos de Carolina, transformando-os no livro Quarto de Despejo. Foi a primeira descrição da vida da favela feita de dentro, tem um inestimável valor histórico e humano. Ela não descreve apenas, analisa e opina, por várias vezes falando da questão racial. Além disso, expressa opiniões bastante críticas acerca da política populista e do oportunismo dos candidatos a cargos eletivos. Carolina escrevia mesmo em condições subumanas, inúmeras vezes passando fome ou acordando de madrugada para poder fazer suas anotações. Sempre teve o sonho, que acabou realizado, de ver aquele material ser publicado.

Neste trecho, a autora fala do dia 13 de maio de 1958.

“Hoje amanheceu chovendo. É um dia simpático para mim. É o dia da Abolição. Dia que comemoramos a libertação dos escravos.

(…)

Continua chovendo. E eu tenho só feijão e sal. A chuva está forte. Mesmo assim, mandei os meninos para a escola. Estou escrevendo até passar a chuva, para eu ir lá no senhor Manuel vender os ferros. Com o dinheiro dos ferros vou comprar arroz e linguiça. A chuva passou um pouco. Vou sair.

… Eu tenho tanto dó dos meus filhos. Quando eles vê as coisas de comer eles brada:

— Viva a mamãe!

A manifestação agrada-me. Mas eu já perdi o hábito de sorrir.

(…)

… Choveu, esfriou. É o inverno que chega. E no inverno a gente come mais. A Vera começou a pedir comida. E eu não tinha. Era a reprise do espetáculo. Eu estava com dois cruzeiros. Pretendia comprar um pouco de farinha para fazer um virado. Fui pedir um pouco de banha a Dona Alice. Ela deu-me banha e arroz. Era 9 horas da noite quando comemos.

E assim no dia 13 de maio de 1958 eu lutava contra a escravatura atual – a fome!”

Fonte: Carolina Maria de Jesus (1914-1977). Quarto de despejo: diário de uma favelada. São Paulo: Editora Ática,2014. pp. 30-32.